quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

CONTO // É tarde para dizer "feliz natal" ?


Era o fim do mundo. E ele já tinha estado ali algumas vezes. Mas, na manhã seguinte, algo acontecia e lá estava tudo novamente no lugar. As idéias, o rádio-relógio piscando 7h30, a cama desfeita, o fogão com panelas sujas, o copo de água metade vazio e ela, ali, ainda deitada, respirando alto. Era tudo o que ele precisava para começar o dia. Uma estranha forma de segurança. Meio vício. Meio medo. Algo que aprendeu a chamar de amor.

Mas naquele instante, ele sabia que amanhã, nada mais estaria como antes. Acreditava realmente estar ali, no fim do mundo. A folha do calendário marcava 25 de dezembro. Sentado no batente de uma calçada, assistia a ida e vinda dos homens de macacões encardidos, quase verdes, carregando caixas de papelão coloridas abarrotadas de inutilidades. Aliás, o que não seria inútil naquele momento? O rádio-relógio, os copos...os porta-retratos, a cama, os discos, o fogão. Tudo nos braços dos carregadores que, lentamente, iam abarrotando o pequeno caminhão de mudanças. Não mais do que uma caçamba onde os objetos iam se empilhotando a céu aberto. Uma espécie de árvore de natal de entulhos. Expostos para qualquer um que passasse na rua, incapazes de ouvir as histórias que eles não paravam de contar.

Somente ele as ouvia. Todas ao mesmo tempo, embaralhando qualquer esboço de raciocínio. Olhava o relógio a cada dois ou três minutos e depois, desviava o olhar para a esquina. E nada. Via apenas crianças correndo de um lado para outro, com seus brinquedos novos nas mãos e todo o tempo do mundo.

A espera durava desde a noite passada. Debruçado na janela, com o reflexo das luzes piscando e mudando a cor do seu rosto a cada instante. O olhar perdido mirava aquela esquina. Vermelho. E nada. Azul, Nenhum telefonema. Verde. Uma mensagenzinha sequer. Era a primeira noite de Natal que passava sozinho naquele apartamento de quarto e sala que, com o tempo, foi ficando cada vez maior. Talvez não tivesse exatamente sozinho. Além das caixas coloridas espalhadas pela sala, restava a tv ligada sem som. Assim passou a noite. Passou o Natal. Na janela. Esperando. Como uma criança que luta contra o sono. Tristeza e ilusão, quase sempre, se confundem. E, às vezes, os adultos também acreditam em Papai Noel.Ele pode não ser um velinho gorducho e simpático. Pode ser um sonho impossível, um sentimento perdido, uma reviravolta no destino, um tempo que não volta. E pode até ser alguém. Real. Feito de carne, osso e saudade. Assim era ela.

...
Era um apartamento de alguns poucos metros quadrados. Uns cinco passos entre a porta de entrada e o quarto. Outros cinco entre a janela da sala e a pia da cozinha. Já era manhã e não demorou para os quatro homens de macacões verdes tirarem todos os móveis dali. Ele foi até o motorista e explicou mais uma vez o endereço para onde deveria levar toda aquela tralha – que, outrora, ele costumava chamar de vida.
Então, decidiu voltar mais uma vez para o apartamento. No elevador, olhou para o espelho como se fosse a primeira vez em dezenas anos. Por um instante, não se reconheceu naquele rosto marcado, barba branca por fazer, cabelos ralos. Olhos escuros. Noites em claro. E então lembrou de quando pisou ali a primeira vez. Cabelos mais longos, olhos mais abertos, sorriso. Não estava sozinho como agora, dentro daquele quadrado. Abriu a porta do apartamento pela última vez e tomou um susto diante do imenso vazio. Nunca o apartamento foi tão grande. Nunca se sentiu tão pequeno.

As palavras se multiplicavam, se misturavam em sua cabeça. Formavam frases perfeitas. Que diziam tudo que ele sempre quis dizer. Por onde andaram essas frases durante todo este tempo? Lembrava das noites mais difíceis, onde procurava a razão da palavra razão. Onde tentava juntar dezenas de palavras para substituir a palavra desculpa. E achava que palavrões doíam mais que palavrinhas. Que o silêncio dizia mais do que a palavra silêncio.

Lá estava ele de novo, brincando de perder palavras, parado ali, no meio da sala. Imóvel. Como se fosse um móvel. Como se tivesse sido esquecido pelo caminhão de mudanças. Toda sua vida mudou. Mas ele não. Continuava o mesmo, por mais que jurasse o contrário. Sabia disso. Não admitia nem mesmo baixinho. Mas sabia. Sabia que precisaria de um caminhão de mudanças para si próprio. Um daqueles grandões. Abarrotados. Cheios daquelas qualidades que as revistas femininas enumerariam com precisão matemática. Os caras de macacões verdes trariam caixas de papelão. SINCERIDADE. Estaria escrito em uma delas. Letras vermelhas garrafais. Hidrocor pilot. SEGURANÇA. COMPANHEIRISMO. PACIÊNCIA. “Podem ir colocando uma em cima da outra”, diria.
Mudanças dignas de quem acredita em Papai Noel. Mas, já há algum tempo, ele sequer acreditava em si mesmo.

Restava a auto-ironia. E se divertia com essas bobagens que pensava. Ria sozinho. Balançava a cabeça se auto-censurando. “Como poderia pensar tanta besteira em um momento como aquele?”. Antes que ousasse responder, ouviu um barulho. Era um carro estacionando. Não, não. Era alguém andando na calçada. Ou seria o telefone tocando? Só podia ser a porta do elevador abrindo. Era ela. Sim, era ela. Não sabia exatamente como, mas tinha certeza que ela estava por perto. Chegando. Ia chegar a qualquer momento. Questão de segundos. De passos. De pressa. Depressa! Era só questão de segundos.

Correu até a janela. Olhou para a esquina. Questão de segundos. Ela apareceria. Claro que apareceria. Questão de segundos. Ele sentia. Não estava errado. Não podia estar. Questão de segundos. Questão se segundos. Questão de segundos.
Ela não apareceu. Às 7h30, silêncio. O rádio-relógio não despertou. Era o fim do mundo, mais uma vez.

...
Mas era preciso seguir em frente. Para fugir do espelho do elevador, desceu pelas escadas. Cruzou a porta do prédio, despediu-se do porteiro. Ouviu um "adeus" e um "feliz natal".
Meio tarde para um "feliz natal"?
Então subiu na caçamba do caminhão de mudanças. Sentou-se em uma das caixas coloridas e autorizou o motorista a ligar o motor. O velho veículo foi deixando a rua lentamente. Olhou para a janela do seu apartamento ficando distante. Para o seu passado ficando distante. E quando todos os seus pensamentos também já estavam distante, sequer ouviu um grito vindo da rua.
Olha o papai noel! - berrou um garotinho de 6 ou 7 anos com uma bola ainda branquinha embaixo dos braços. O menino deixou os pais na calçada e saiu correndo atrás do caminhão, acenando, e repetindo o grito.
Quanto mais o garotinho corria, mais o caminhão se distanciava.
E aquele homem velho, cansado, de cabelos brancos ralos, barba de semanas por fazer, olhar perdido, coração partido, sentado numa pilha de caixas de papelão coloridas nunca mais sairia da cabeça do menino.
Ele voltou andando lentamente para os pais que riam na calçada. "Vocês viram? Era o papai noel voltando pra casa! Eu sabia que um dia encontraria com ele".
Jamais poderia saber que aquele "papai noel" nunca voltaria pra casa.
Jamais precisaria saber.
Pelos olhos das crianças, ficção vira realidade. Realidade vira ficção. Sonhos se realizam. Mágicas nunca são truques. Mas truques sempre são mágicas. Amores duram mais. Famílias mais ainda. E todas as histórias terminam com o final feliz.

Era 8h30 quando o telefone tocou no apartamento vazio.

Era tarde demais para desejar "feliz natal"?

O final dessa história depende dos olhos de quem a leu.


(de Fred Figueira, publicado na série "Contos de Natal", do Diario de Pernambuco, dia 25 de dezembro)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CAPA - Um ano em 12 páginas

Entre os dias 13 de janeiro e 26 de novembro - justamente o quanto durou a temporada 2011 para o futebol pernambucano - o Diario publicou 37 capas com manchetes direcionadas para Santa Cruz, Náutico e Sport.

Apenas uma delas foi dedicada aos três clubes. E, não por coincidência, foi a capa de "abertura" do Campeonato Estadual. Para montar a primeira edição esportiva do ano, era preciso captar a essência do Pernambucano 2011. Seria uma QUESTÃO DE HONRA para o Sport conquistar o hexa, para o Náutico defendê-lo e para o Santa Cruz mostrar que não estava condenado a ser um coadjuvante dentro do próprio estado.

A retrospectiva comprova que o Santa Cruz foi o time com mais espaço editorial na 1ª página do Diario em 2011. Apareceu em 17 capas, sendo 12 delas inteiramente dedicadas ao clube e outras cinco dividindo o espaço com um dos rivais.

A capa que resume a mudança de foco na cobertura jornalística foi a do dia 28 de janeiro. Depois de seis vitórias em seis jogos, estava claro que havia algo de diferente no clube tricolor. Nos últimos anos, era uma imagem comum nas páginas dos jornais as fotos de torcedores do Santa Cruz chorando, abatidos ou revoltados na arquibancada do Arruda. Mas esta cena não se repetia em 2011. Pelo contrário.

Distribuição das capas:

TOTAL:
37 capas
Edição do dia seguinte à primeira partida da final do Pernambucano: Sport 0x2 Santa Cruz.

Santa Cruz - 12 (+ 5 divididas com um rival)
Náutico - 6 (+ 8 divididas)
Sport - 2 (+ 9 divididas)


NO ESTADUAL:
23 capas
Esta edição foi depois do primeiro clássico do ano, mas serviria para resumir a temporada do Náutico. O estádio dos Aflitos foi uma das principais armas do clube para garantir o retorno à Série A.

Santa Cruz - 7
Náutico - 4
Sport - 0


Divididas: 8 (3 para Santa/Sport; 2 para Santa/Náutico; 2 para Náutico/Sport)

A obsessão do hexa para Sport e Náutico era o foco natural do PE2011. Por isso, as partidas das semifinais tiveram um tratamento de decisão de título nas páginas do Diario. O detalhe é que a classificação rubro-negra acabou sendo derrubada da manchete quase na madrugada, com a morte de Osama bin Laden. Assim, escolhi esta capa para representar os seis Clássicos dos Clássicos da temporada.

Esta capa, na minha opinião, é uma das melhores do ano - sobretudo pelas excelentes fotos de Helder Tavares. O detalhe é que ela foi publicada um dia antes da final (no sábado) e acabou ficando superior em praticamente todos os aspectos em relação a página que saiu no domingo da decisão. No final da noite de sexta-feira, na redação, ainda pensamos em fazer a troca...tarde demais. Entre a ideia original e a realização nem sempre tudo funciona. Foi mais ou menos o que aconteceu com a capa da grande final do Estadual, que coloco logo abaixo:

Caso Eduardo Ramos - 2


O fato mais lamentável do futebol estadual em 2011 ganhou duas capas do Diario. A primeira ainda com a denúncia quente do presidente do Náutico, Berillo Júnior, revelando ter provas de uma tentativa de suborno do Sport envolvendo o meia Eduardo Ramos. No dia seguinte, a "bomba" começou a perder força e o foco foi rapidamente invertido. No fim da temporada, o dirigente alvirrubro acabou sendo punido pelo episódio.

SÉRIE D
5 capas
A explicação para este "domínio" tricolor tem dois motivos muito claros. O primeiro, lógico, foi a campanha surpreendente e o título estadual. É absolutamente natural que o campeão do ano tenha mais espaço do que os seus rivais. A segunda razão passa diretamente pelo dia dos jogos da Série D e pela logística dos jornais. Como só o Santa Cruz jogou aos domingos a partir de maio, era inevitável que se tornasse um dos assuntos principais da segunda-feira - dia em que tradicionalmente o jornalismo esportivo ganha mais espaço. Em contrapartida, o fato de Náutico e Sport jogarem aos sábados praticamente inviabiliza uma manchete no dia seguinte. A 2ª edição do domingo, na maioria dos casos, é exclusiva para assinantes. Por isso não é necessário fazer uma mudança radical na concepção da capa. Apenas na última rodada da Série B, a indefinição criada em torno do acesso do Sport praticamente obrigava uma 2ª edição do jornal de domingo não apenas para assinantes, mas também para ser comercializada nas ruas.

SÉRIE B
8 capas
Os jogadores comemoraram, a torcida comemorou e até o sempre contido técnico Waldemar Lemos cedeu a festa que se espalhou pelo estádio dos Aflitos pelo praticamente certo acesso do Náutico à Série A do Brasileiro depois da vitória sobre o Barueri. Mas ainda faltavam dois pontos para os alvirrubros garantirem de uma vez por todas a vaga. Na matemática, a chance do clube não subir era inferior a 1%. A foto de Waldemar sendo carregado pelos jogadores (da autoria de Ricardo Fernandes)já era uma imagem forte o suficiente para deixar claro que o Náutico havia subido. Mas do título de um post no blog de Cassio Zirpoli ("Aos matemáticos, o Náutico subiu") acabou saindo a definição da manchete.

Náutico - 2
Sport - 2
Divididos: 4


A primeira capa dedicada ao Sport no ano foi publicada no dia 26 de novembro, data cabalística da última rodada da Série B. Só este fato já representa o que foi o ano rubro-negro. Quase nada que merecesse uma manchete. E a edição do dia do decisivo jogo contra o Vila Nova acabou resumindo toda a temporada. As derrotas, as provocações, a revolta da torcida...e também o renascimento no apagar das luzes, com as vitórias em sequência e a incrível cena da invasão no Aeroporto Internacional dos Guararapes, três dias antes. Minha primeira ideia era "Quem vai rir por último?". Acabou não sendo muito bem recebida. A 2ª opção, mais direta e definitiva, acabou sendo a escolhida. Um ano em 90 minutos. Assim foi 2011 para o Sport.

***Não sei se alguém teve paciência para chegar até aqui, já que este post extrapolou todos os padrões atuais. Tudo o que ultrapassa 140 caracteres parece exagero. Mas, acreditem, tentei realmente resumir ao máximo o ano. Como este é um blog pessoal, optei por publicar as capas em que trabalhei direta ou, pelo menos, indiretamente (com um pitaco ali ou aqui) - já que, nos meus plantões aos domingos, não assumo a função de editor da 1ª página e fico com o caderno Superesportes. E - como já escrevi em postagens anteriores sobre as capas do Diario - a edição final é sempre resultado de um processo que passa por muita gente. Uma espécie de filtro de visões e opiniões diferentes que, no final das contas, vão se completando.

No calendário do futebol pernambucano, 2011 já terminou. Feliz ano novo, então.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

CAPA - Continuando...

A força das redes sociais formaram uma onda espontânea de repercussão - derrubando várias fronteiras (não apenas geográficas) - em torno de duas capas do Diario neste ano. A do massacre do Realengo e a da morte de Steve Jobs.


As duas inegavelmente nasceram de um instante de inspiração. Seja a manchete "12 mortos, 190 milhões de feridos", que surgiu no início da tarde, ou o desenho simples de Jarbas Domingos, esboçado quando já era madrugada.

Mas a inspiração, os insights, as boas e raras ideias, na verdade, não surgem por acaso. É fundamental ter espaço para que isso aconteça. O que só é possível quando existe um processo de trabalho consistente. Uma base conceitual. Poderíamos até tentar resumir como "liberdade de criação". Mas nem de perto resumiria.

A liberdade acabaria sendo dispersa se não houvesse um conceito e várias pessoas trabalhando junto em torno deste conceito que une jornalismo, fotografia e arte.Essa união de ferramentas, de visões e de interpretações de um fato forma um filtro natural.E a inspiração só se torna algo concreto e funcional ao passar por esse filtro.

Enfim...esta postagem é para (tentar) mostrar um pouco desta base, com mais três capas que passaram por esse filtro:


Esta foi uma capa quádrupla publicada no último dia de 2010. As quatro páginas formavam uma retrospectiva da década.

A reportagem sobre a verticalização do Recife - uma das 20 cidades com prédios mais altos do mundo - pedia uma capa que mostrasse isso. Daí a aposta de quebrar o padrão e trazer uma manchete também vertical.

E no dia em que a foto já dizia tudo. A opção por ela dizer tudo. Numa capa sem manchete.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

CAPA - Steve Jobs, a escolha

Neste blog, as postagens dividem-se entre reportagens e capas de jornal. Às vezes me perguntam o que é mais difícil fazer e, sem dúvida, fico com a segunda opção. Não apenas pela missão de ter que resumir tudo em uma frase, uma palavra, uma imagem. Ou ter que lotear o espaço entre dezenas de acontecimentos importantes do dia. O complicado mesmo para fazer uma capa de jornal é a escolha. Mais ainda: a pressa e a pressão em fazer esta escolha.

A noite/madrugada de ontem deixa bem claro o quanto isso é difícil. A notícia da morte de Steve Jobs nos pegou - no Diario de Pernambuco - em pleno processo de concepção da capa. A primeira escolha já era delicada: Que espaço merecia a notícia? De início, a ideia mais simples era colocar uma barra acima da manchete, que seria sobre empregos temporários no Recife. Sequer chegamos a fazer essa opção.
Em questão de minutos, não se falava mais em outra coisa. Na internet e fora dela. Todos conversavam sobre isso. E parecia ficar mais claro que se tratava de um personagem de uma era. Um homem que interferiu diretamente no modo como vivemos e nos relacionamos. O caminho estava escolhido.

Daí pra frente, a tempestade de ideias. Colocamos a maçã pra lá e pra cá...de todas as formas. Olhamos fotos de Jobs. Quase sempre aquelas escuras, com sombras e a maçã ao fundo. E daí em diante várias linhas e possibilidades foram evoluindo e se consolidando. Quatro delas foram definidas. Três ficaram prontas. Uma foi para as ruas.

A escolhida surgiu de forma despretensiosa. Em um rabisco de lápis de Jarbas Domingos. Quando o editor de arte, Mascaro, viu aquele desenho, já enxergou a capa pronta. Quando ele me mostrou, a manchete "O homem que deu rosto ao futuro" surgiu com a velocidade de um diálogo
.
Uma capa foi para as ruas. As outras - que em outros tempos estariam condenadas ao inevitável "delete" - optamos por disponibilizá-las na internet. Virou conteúdo extra no site e na versão iPad do Diario. E uma boa história para contar neste blog. As artes são de Greg (maçã + planeta) e Pedrom (Steve).

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

REPORTAGEM // Manari e os dias melhores

"Aqui até o nada serve". Esta frase deu o tom final da reportagem que começou a ser publicada ontem no Diario sobre a cidade de Manari. Quem disse a frase foi a agricultora Teresa Maria dos Santos, de 54 anos. Uma mulher que construiu a sua vida naquele município do Sertão, que só foi emancipado em 1997, fica a 318,4 quilômetros do Recife e que não aparece em nenhuma das sinalizações da estrada. Um lugar perdido, esquecido, imerso em miséria e condições de vida subumanas, que parecia condenado a a ficar para sempre escondido por trás da poeira da areia do único caminho que leva até a cidade. Parecia.


No rastro da poeira dos números levantados pelo censo demográfico do IBGE em 2000, Manari apareceu. Da pior forma possível. No cruzamento de dados elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2004, a cidade apresentou o mais baixo índice de desenvolvimento humano do país (0,467). Altíssimas taxas de miséria, pobreza, analfabetismo e mortalidade infantil. Péssimos níveis de acesso àsaúde, à educação e ao saneamento básico. Uma esperança de vida de 55,7 anos.

Teresa Maria está com 54. Mas a sua esperança de vida hoje, já não se mede. Esperança é uma palavra que a agricultora cultivou a vida inteira, mas foram raras as vezes que colheu os frutos. Uma vida simples. Sem chances de mudança: "Nunca pude ir para a escola. Minha família toda vivia na enxada e eu comecei a trabalhar na roça aos oito anos". Roça que garante a sua sobrevivência até hoje. "Tudo o que planto é para alimentar a minha família. Às vezes, dá pra sobrar uma coisinha...aí a gente vem vender na feira", diz Teresa - que não revela quanto consegue receber nessas pequenas vendas.

Depois de minutos de conversa, começa a ficar um pouco mais fácil entender o que ela quis dizer com "aqui até o nada serve". O "nada" de hoje, simplesmente, é melhor que o "nada" de ontem. "Vivíamos morrendo de sede aqui. Não tinha médico, remédios, nem escola. Sempre fomos pobres, mas hoje a gente acorda sabendo que vai viver", diz. Sua vida mudou.Pouco, mas mudou. Sua mãe tem 80 anos e uma saúde tranqüila. Viveu além da "esperança" da cidade. Seus quatro filhos reescreveram a história da família e aprenderam a escrever. Todos estão na escola. E Manari aprendeu a lição.


Sombrinhas
São 13h de uma terça-feira e o comércio está fechado na área urbana de Manari. E ficará assim pelo menos até às 15h. Pela rua, poucas pessoas caminham embaixo das suas sombrinhas para se proteger do sol. Aquele sol que se imagina de uma cidade do Sertão. Nas sombras das árvores, homens conversam embaixo dos seus chapéus. Passa um carro sem carroceria. Passa um porco. Dois homens estão quebrando o calçamento. Na verdade, construindo um futuro que demorou demais para chegar. Água encanada e saneamento básico. Dias melhores. Duas meninas com sombrinhas cor de rosa e cadernos na mão conversam baixinho enquanto seguem para a escola. Sorriem para a câmera.

Do outro lado da rua, uma pequena casa de muro verde e azul. Porta e janela. Telhas velhas. Na fachada, letras pretas e vermelhas avisam: AGÊNCIA DE VIAGENS. MANARI A SÃO PAULO. Por muitos anos, ali estava a saída. A saída de Manari. Se não a única, certamente a mais tentadora e, por isso mesmo, a mais comum. Todas as quintas, parte o ônibus. Clandestino. A passagem é R$ 180,00. A viagem, se tudo der certo, de dois dias. Conversando com as pessoas pelas ruas, é praticamente impossível encontrar alguém que não tenha ao menos um familiar em São Paulo.

"Todas as pessoas mais velhas têm família lá. Algumas bem estruturadas. A maioria, no entanto, ainda passa muitas dificuldades", conta Rogério Silva, 25 anos e comerciante na feira do município. Ele nunca teve um emprego com carteira assinada. Na verdade, qualquer tipo de emprego - que não seja ligado à Prefeitura - é algo praticamente inexistente ali. O pouco dinheiro que circula no tímido comércio da cidade é quase todo proveniente das aposentadorias e do funcionalismo público.

A condição de Rogério é até uma exceção. Vende verduras na feira e consegue tirar até R$ 350,00 por mês. Dinheiro suficiente para sustentar ainda a sua esposa e o filho de um ano e seis meses. Milagres...necessidades de Manari. Rogério já foi uma vez para São Paulo. Voltou e não tem planos para entrar de novo no ônibus das quintas-feiras.

Ele ficou e viu a cidade começar a mudar nos últimos dois anos. Debaixo dos seus pés, estão sendo construídos o encanamento para a água e a estrutura para a implantação do sistema de esgoto. Cisternas foram espalhadas pelos sítios na zona rural. A água da chuva consegue ser reaproveitada. Serviços básicos que, nesse caso, têm um significado muito maior. Falam em desenvolvimento. Pela primeira vez, como se este fosse realmente possível. As duas escolas foram reformadas. Os alunos agora podem completar o ensino médio sem ter que sair da cidade. O hospital teve as instalações recuperadas e, o mais importante, todos os dias, existe pelo menos um médico de plantão.

Desvio
"Sem a água encanada e o saneamento, não tem nem como imaginar um empresário de fora vir aqui, investir, montar uma fábrica, um hotel...", explica Lucas Bezerra, 28 anos, assessor do prefeito Otaviano Martins - que mora na cidade vizinha e quando está em Manari acaba atraindo uma pequena multidão para a frente da Prefeitura. Pessoas que precisam e pedem ajuda. Dinheiro, cestas básicas, remédios, materiais de construção. Otaviano costuma atendê-las. Um desvio de função, é verdade. Mas um tanto compreensível para quem está ali.

"Depois da cidade ter aparecido como a última colocada no IDH do país, os olhos das pessoas se voltaram pra cá. Todos passaram a ajudar. Foi algo ruim que trouxe coisas boas", resume Lucas - que, assim como toda a cidade, espera um futuro melhor.

O jornalismo às vezes tem uma lógica perversa. Vendo a miséria sumindo aos poucosno retrovisor, fica a certeza de que, no próximo censo do IBGE, aquela não será mais a cidade com pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil e certamente, não estará mais na rota das equipes reportagens - que seguem ávidas os rumos que as pesquisas e análises sociais revelam. Manari desaparece na poeira.


As fotos são de Juliana Leitão/DP

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

REPORTAGEM // O milagre da maçã (Manari, a primeira viagem)

Numa armação enferrujada, deveria estar a placa que avisa o início - ou pelo menos a proximidade da cidade de Manari. setenta e seis quilômetros de asfalto e buracos da PE-270 ficaram para trás. Mais de 300 km do Recife. Na estrada que leva do litoral ao Sertão de Pernambuco, incontáveis placas verdes anunciam cidades e distâncias em letras brancas. Manari não aparece em nenhuma delas. Talvez por esquecimento. Talvez por não ser um lugar para onde alguém pense em ir. Distante demais da capital e de qualquer outro pólo de desenvolvimento do interior. Não existem razões econômicas ou culturais que levem alguém até ali. Até aquela armação metálica vazia. Que funciona apenas como uma moldura enferrujada para um céu quase sempre azul. Que avisa a chegada a lugar nenhum.


O silêncio na estrada reforça essa sensação de distância. De isolamento. Geográfico e social. Ouve-se o barulho de um motor. Ainda longe, uma moto se aproxima. Passa veloz. Desaparece. Segue pela estrada. Manari não segue. O asfalto termina a alguns metros dali. Em um trevo com mato crescendo por baixo do concreto. É de areia e poeira o caminho que resta pela frente. Vinte e cinco quilômetros que se arrastam lentamente em uma hora de percurso até a área urbana do município.

Pela areia, homens de chapéu puxando cavalos e carroças deixam suas pegadas. Andam lentamente. São trabalhadores rurais. Dos 13 mil habitantes de Manari, quase dez mil vivem na área dos sítios. A agricultura é de subsistência. Pequenas plantações de feijão e mandioca surgem no cenário predominantemente verde pelas chuvas da época. Bodes, cavalos, bois, guinés e urubus cortam o caminho.

A área urbana de Manari se aproxima. Os paralelepípedos avisam o início da cidade. Duas placas de propaganda de obras públicas saltam aos olhos: "Luz para Todos - investimento de R$212.811,25". "Pavimentação das vias públicas - investimento: R$103.974,99". Esta última, aliás, explica os paralelepípedos. Até bem pouco tempo, as ruas eram de barro. Seria uma ironia quase perversa esperar por placas dotipo: "Bem-vindos a Manari". Aqui começa a cidade com o pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil.


O MILAGRE DA MAÇÃ
Uma maçã. Um canivete. Uma precisão geométrica. A lâmina desenha quatro cortes que dividem a fruta vermelha em oito pedacinhos aparentemente iguais. Olhos atentos acompanham o movimento da lâmina. Sete pares de olhos. Sete crianças que vão estendendo suas mãos de unhas sujas. Vitória é a mais nova. Tem dois anos. Pega sua parte na maçã, leva à boca e dá uma pequena mordida. Demorará alguns minutos até comer tudo. Seus irmãos mais velhos repetem o gesto. Um a um, os pedacinhos vão desaparecendo. Manoel tem 15 anos. É o mais velho. O tempo escrito nas suas mãos parece andar muito mais rápido. Ele não quis sua parte. O homem que cortara a maçã insistiu: "Guarde para comer mais tarde". Manoel cedeu. O "mais tarde" não demorou três minutos.

Gildo é o motorista da equipe de reportagem do Diario que foi até Manari. Enquanto a mãe das sete crianças mostrava os quatro cômodos apertados, sujos e escuros da pequena casa em que eles vivem - na zona rural de Manari -, desviei os olhos para o lado de fora. Na sombra de um pinheiro infrutífero, Gildo estava cercado pelos meninos e meninas, com a pequena faca nas mãos, operando aquele que seria o "milagre da maçã". Uma cena espontânea que reflete um sentimento comum para quem chega até ali: é difícil não se envolver com a realidade de Manari.

Dona Aneci tem 40 anos. O corpo franzino revela fraqueza. Recém-operada de uma ligação de trompas, anda muito devagar, apoiando-se nas paredes. A voz, cansada, não desperdiça palavras: "Não consigo mais trabalhar", lamenta. Aneci nunca foi para a escola e começou a lida no campo aos oito anos de idade. Aos 15, estava casada e grávida pela primeira vez. Ainda teria outras 20 gestações pela frente. Perdeu seis delas e teve 15 filhos. Cinco deles morreram nos primeiros anos de vida vítimas da desnutrição. Os outros dez resistem como podem. Os três mais velhos pegaram o ônibus para São Paulo. Nunca conseguiram um emprego fixo, vivem dos "bicos" na cidade grande e nunca puderam mandar dinheiro para casa.

Os sete que ficaram com a mãe esperampor dias melhores. Uma espera que se equilibra no limite extremo da sobrevivência. Uma bacia de metal com farinha de mandioca e uns pequenos pedaços de carne seca pendurados em um barbante era todo o estoque de comida que existia na casa. Dinheiro praticamente não existe ali. Aneci recebe apenas R$ 95 de Bolsa Família.


A alimentação depende diretamente do leite doado pelo governo e da agricultura de subsistência. A família planta feijão e mandioca nos arredores de casa. Mas a chuva nem sempre ajuda. E a última colheita foi toda perdida. "Tem dias que não tem o que botar na panela. Só a farinha misturada com água". Desesperado, o marido de Aneci também foi embora para São Paulo desde fevereiro. "Da última vez, ele me falou que pelo jeito que estão as coisas por lá, vai ter que voltar a pé para casa".

As lágrimas que pesam nos olhos de Aneci enquanto relata a sua vida dispensariam todos os números e análises do Censo do IBGE e do Atlas do Desenvolvimento Humano. Os R$ 30,43 de renda per capita; os 89,9% de pobres; os 63,9% de adultos analfabetos; a escolaridade média de 1,3 anos; a morte antes dos cinco anos de 120 crianças para cada mil nascidas.

Toda a miséria está ali. Na falta de comida; na necessidade de remédios; nos retalhos de colchão velho espalhados pelo chão de barro onde as crianças dormem; na falta de um banheiro (os banhos são na cisterna e o resto, no mato mesmo). O pior lugar para se viver é aquele em que sequer podemos chamar a existência de vida. Mas os olhos de quem passa não enxergam a mesma realidade dos de quem fica.


Um sorriso - "A vida hoje está muito melhor", garante Aneci - tomando por base algo que parece invisível para quem chega ali pela primeira vez. Como? Onde? Por quê? Ela então começa a explicar o que mudou nos últimos anos. O acesso à assistência médica, a cisterna que junta água no quintal de casa, a multimistura que evita a desnutrição infantil, a escola que educa os filhos#

"Meus filhos que morreram não tinham médico, nem alimento. Hoje, os meninos dificilmente teriam morrido. Nunca mais ouvi falar de uma criança que tenha morrido doente ou desnutrida por aqui", relata Aneci.

Manoel, 15 anos e aluno da 1º ano do ensino médio , assumiu precocemente a função de "homem da casa" e lembra com um sorriso infantil das longas caminhadas em busca de água: "Saíamos ainda de madrugada. A gente tinha que andar umas três horas para ir, encher os baldes e voltar. Todos os dias...". Hoje, usa esse tempo plantando feijão. Está sempre dando uma olhada na terra. Diz que vai colher três sacos neste mês. Difícil foi convencer Manoel a tirar a foto ao lado da família. Queria colocar a "roupa social" para ser fotografado.

Grandes mudanças. Pequenos milagres. Feitos com a mesma essência daquela da maçã. Quando o "estar" se transforma em "integrar". O "dividir", em "multiplicar". E foi assim que o fato de ter sido considerada a pior entre as 5.507 cidades do Brasil (tomando por base os dados colhidos no Censo do IBGE de 2000 e interpretados pelo Atlas do Desenvolvimento Humano) acabou se tornando uma espécie de grito de socorro. O país - poder público e sociedade civil - ouviu e descobriu Manari. A cidade que as placas não anunciam, que a miséria não deixava existir. Um lugar onde não nascem maçãs.

*Todas as fotos são de Juliana Leitão/DP

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

As três capas de Ludmila


Esta foto de Ludmila França, "uma menina de olhos amarelos com hepatite fulminante" - como definia a reportagem escrita por Juliana Colares - apareceu em três capas do Diario de Pernambuco. Porém, apenas duas dessas capas foram para as ruas. A outra precisou ser deletada quando já estava no parque gráfico, pronta para se transformar em milhares.

Eram quase 23h do domingo. Já havia saído da redação e estava jantando em um restaurante. Lá, eu contava a impressionante e emocionante história que estaria na capa do Diario do dia seguinte. Um verdadeiro milagre mudaria o destino daquela menina dos olhos amarelos.

O drama de Ludmila havia sido a manchete do Diario no domingo: "TRANSPLANTE, na fila pela vida". Entre as histórias de pessoas que esperavam por um órgão, a dela era a mais forte. Talvez pelo olhar da fotografia, mas principalmente por uma informação que a repórter - corretamente - preferiu nem colocar no texto. Sem um fígado novo, Ludmila - que veio do Maranhão para o Recife na luta pela sobrevivência - teria apenas 10 dias de vida.


Mas como eu contava, um milagre aconteceu. Ainda na madrugada do sábado para o domingo, um homem de 42 anos morreu vítima de um AVC no Ceará. O fígado compatível foi trazido às pressas para o Recife. O transplante foi um sucesso. O texto da reportagem descrevia: "Ludmila passou 20 horas com o fígado novo. A cirurgia transcorreu bem e ela chegou a ficar totalmente consciente. Até conversou".

"O milagre da vida". Esta seria a manchete do Diario na segunda-feira, 27 de abril de 2009.
Mas esta capa nunca foi publicada.

Durante o jantar, o meu telefone tocou. Da redação quase vazia, veio a terrível notícia: Ludmila havia morrido pouco depois das 22h. O próprio médico ligou.

De volta ao jornal, às pressas, para deletar o final feliz.

Agora, mais de dois anos depois, relendo todo o materal, dois momentos captam a tristeza dessa história.

O primeiro deles foi publicado no texto assinado por Ana Braga e Juliana Colares: À tarde, quando deu entrevista ao Diario sobre o transplante da filha, Eric falava dos planos de Ludmila. "Como toda criança, ela quer comer chocolate e se banhar na praia", respondeu à pergunta sobre os primerios desejos da menina, após o transplante."Pai, finalmente a gente vai poder voltar para casa", disse a menina,quando recebeu a notícia de que, enfim, havia sido encontrado um doador para ela.

O segundo está nos comentários da página. Sem data. "Sinto muita falta da Ludmila, choro todo dia. Não sei como suportar a falta que ela me faz.". Quem é assina é Eric dos Anjos. O pai.

De todas as capas que já fiz no Diario, esta foi a mais difícil.

Assim é o jornalismo.



*as fotos são da autoria de Alcione Ferreria/DP

terça-feira, 30 de agosto de 2011

CAPA // A última manchete

Um músico, um político, um terrorista, um dirigente de futebol. A vida e a morte numa última manchete. Algo sempre difícil. Equilibrar a notícia e a emoção. Na linha tênue entre a sensibilidade e o exagero.
Michael Jackson.26/06/09
Ele mudou a música pop. Mudou a sua cor. O seu corpo. Mas não poderia mudar o seu destino. Dos 5 aos 50 anos de idade, encantou, embalou, conquistou, surpreendeu e chocou o mundo. Às 18h26 de ontem morreu a sorridente criança negra de cabelo black power. Morreu o estranho homem branco de aparência frágil. Morreu o ser humano que não queria envelhecer. Que vivia na sua própria Terra do Nunca. Ontem morreu o homem. Ontem, enfim, Michael Jackson tornou-se eterno.

Osama Bin Laden. 02/05/11
"Nesta noite, um pequeno time de soldados americanos, após um tiroteio, matou Bin Laden e capturou o seu corpo. Nossa segurança ainda não está completamente garantida, mas cada um dos nossos esforços será para fazer do mundo um lugar de paz". Essas foram as palavras do presidente dos EUA, Barack Obama, ao anunciar, no início desta madrugada, a morte do terrorista mais procurado de todos os tempos, depois de uma caçada que se estendeu por dez anos.

Carlos Alberto Olivera. 31/08/11
Nos últimos 16 anos, o futebol pernambucano esteve sob controle de Carlos Alberto Oliveira. E continuaria assim até 2015. A sua morte interrompe um mandato que dividia opiniões. Exaltado por uns e duramente criticado por outros. Seus métodos e o seu estilo sempre foram discutíveis. Mas não a sua paixão pelo futebol e a sua posição em defesa dos interesses do estado.







sexta-feira, 26 de agosto de 2011

REPORTAGEM // Todas as lutas de Tony


"Shane D'Souza estava praticamente irreconhecível. Os guardas o arrastaram pelo chão da cela e depositaram seu corpo quebrado em uma maca suja. Ele fora espancado, golpeado, cortado, estuprado e estragado de todas as formas possíveis. Poças de sangue formavam grandes manchas púrpuras no concreto frio. Quando o levaram para a ala do hospital, deixou para trás uma trilha sinuosa de mutilação no corredor escuro. Todos sabíamos quem era o culpado pelo ataque àquele jovem. Ninguém disse uma palavra. As autoridades não se importavam. Não haveria inquérito ou sequer punição para o agressor. Nada de justiça para o meu amigo. Era um dia como outro na prisão. Éramos assassinos, traficantes, gângsters, pedófilos, ladrões, estupradores, terroristas e trapaceiros: um saco repleto com a mistura da depravação humana; os piores dos piores"

...Numa mesa de centro, entre os sofás simples do saguão de entrada do antigo Hotel Plaza Recife, na Rua da Aurora, estão espalhados os dois principais jornais do estado. Mas a descrição do parágrafo acima não está em nenhuma reportagem daquela segunda-feira. Não era uma notícia. Não aconteceu em nenhum dos presídios pernambucanos. Até poderia - já que agressões e mortes com tais requintes de violência extrema também fazem parte do cotidiano de algumas unidades penais do estado. Mas não era o caso. A cena da morte do jovem Shane faz parte de uma realidade distante. Distância no sentido de tempo e espaço. Uma história presa em um passado que, simplesmente, não passou. E que, ao menos para um homem, precisa ser contada e repetida. Um homem que tenta apenas ser comum. Que apenas tenta.

Um exemplar de "Domando o Tigre"está sobre uma mesa atrás da recepção do hotel. O marcador de livros repousa na página 17. Exatamente onde começaria o segundo capítulo. Apesar da calmaria no saguão, o recepcionista Roberto não pode passar muito tempo entretido com a biografia que ganhara um dia antes. "Ele foi tricampeão mundial de kung-fu.Não é pouco coisa. Ele é capaz de mutilar uma pessoa em poucos minutos", conta Roberto. Instantes depois, o recepcionista repete a história - ou o pouco que leu nas primeiras páginas - para outro funcionário do Plaza. Repete a história da vida de Tony Anthony.

A descrição que abriu esta reportagem é justamente o primeiro parágrafo do livro que Roberto está lendo. "Domando o Tigre" é uma biografia de Tony Anthony. O relato é de dentro da prisão central de Nicósia, no Chipre. Tony foi preso em 1990. Um ano antes, tornava-se tricampeão mundial de kung-fu. Mas já não se dedicava exclusivamente a carreira esportiva. Também trabalhava como guarda-costas no alto escalão do sistema de proteção particular na Inglaterra. Assim tornou-se chefe de segurança do embaixador da Arábia Saudita no Reino Unido, Itália e Chipre, Amin Fahed. A estreita ligação de Amin com as redes internacionais de jogo e prostituição acabou colocando Tony em um caminho inevitável de espancamentos, assassinatos e assaltos.

O 'homem com sede desangue' bebe chá

Era uma tarde de segunda-feira movimentada na Rua da Aurora. Passava das 16h30 quando uma kombi branca estacionou em frente ao hotel. Dentro dela, havia um ventilador e algumas caixas com cartazes e livros. Do veículo, desce um homem branco, bochechas rosadas e suadas, olhar amigável, expressão cansada, puxando duas pequenas malas pretas com rodinhas. Uma imagem nada assustadora. Era realmente o que pode se chamar de um homem comum. Difícil imaginá-lo "mutilando" alguém em poucos minutos. Mas a pequena foto numa das orelhas do livro não deixava dúvidas: era mesmo Tony Anthony que acabava de retornar ao Plaza, onde estava hospedado desde o final de semana. Já no sagüão, ele olhou para o relógio com cara de preocupação. Perguntou se a entrevista poderia ser feita no restaurante. Disse que estava cansado e precisava beber algo. Na contracapa do seu livro, um texto com pretensões épicas e tom inevitável de sensacionalismo, define Anthony como um homem com sede de sangue. Mas ao chegar à mesa - como um bom inglês - ele pediu um chá. Escolheu o de erva doce.

E assim, fantasmas viram personagens

Mas afinal o que o ex-tricampeão mundial de kung-fu, o violento guarda-costas e o criminoso internacional estaria fazendo em um hotel simples do centro do Recife? A verdade é que essas três definições já não se aplicam à Tony Anthony. São apenas personagens da sua vida. Ou, pelo menos, dos primeiros capítulos desta. Até aquele momento, praticamente tudo o que se podia saber sobre o entrevistado estava escrito na tal contra-capa do livro que lançou no ano passado. Ou na já citada descrição da morte do seu melhor amigo na prisão. Morte que ele jurou vingar com brutalidade semelhance. Essa vingança é o ponto de partida do livro, mas na verdade é marco que divide a vida de Tony Anthony em duas partes. A sua história em duas vidas. A primeira narra a construção de homem violento. Enquanto bebe o seu chá, Tony conta os fatos com uma certa frieza. De forma metódica. Sem demonstrar emoção. Como se não passasse de uma ficção. Como se realmente o menino aterrorizado e espancado pelo avô ou o jovem perdido e violento fossem mesmo meros personagens. Talvez isso até se explique pelo cansaço de repetir pela enésima vez essas passagens da sua vida. Mas era justamente essa a razão que o trazia até ali. Até aqui. O tom muda um pouco quando ele relata a morte da namorada em um acidente de carro na Inglaterra. "A partir desse dia, me tornei ainda mais violento. Passei a exagerar nos espancamentos. Minha reação era além dos limites. Quebrava as pessoas em várias partes. Matei algumas delas sem qualquer necessidade", confessa, com a naturalidade de quem convive com um passado que preferiu não esquecer.


De repente, o mal vira bem.

A vingança contra o assassino de Shane, no entanto, não aconteceu. Antes disso, o prisioneiro conheceu um missionário da Irlanda do Norte, Michael Wright, que começou a escrever cartas para Tony. "Eu me aborrecia quando via os prisioneiros tornando-se religiosos. Para mim, aquilo era um sinal de fraqueza. Só aceitei encontrar com Michael pela primeira vez, porque os outros presos diziam que essas visitas aconteciam em um local onde se vendia coca-colas e sabia que ele acabaria pagando uma pra mim", expõe o ex-lutador, que teve formação budista. Sim, a partir desse ponto, a história de Anthony se mistura com a de milhares de outros prisioneiros que acabam sendo "evangelizados" durante o cumprimento da pena. Claro que Marcos Wright não mandava cartas apenas para Tony. "Fiquei me perguntando porque alguém se preocuparia comigo se até mesmo os meus amigos e a minha família já haviam me abandonado", conta Anthony, deixando claro a fragilidade em que os presos se encontram na hora em que recebem cartas como as de Wright ou visitas de grupos religiosos. A partir daqui, até o tom de voz dele muda. A emoção aparece. Talvez, tão metódica quanto a frieza dos minutos anteriores. Ele está livre. Desde que deixou a prisão da Nicósia, Tony abandonou completamente o kung-fu. Hoje, usa o velho clichê religioso do "Jesus ensina a dar a outra face". Sim, Tony é mais um prisioneiro que virou missionário. Mais um "homem mau" que virou "homem bom". Ele sabe que repetir sua história não trará o perdão incondicional da parte da sociedade que torce o nariz para sua religião. Pregadores como ele aprenderam a conviver com a devoção de alguns e a ironia de outros. Sua história e sua redenção são como a sua fé. Ele acredita. Mas você não precisa acreditar.

O final da história que não termina

Tony fundou a Avanti Ministries Limited e trabalha com várias igrejas evangélicas da Inglaterra. Publicou o livro "Domando o tigre" em 2004 e já viajou 53 países com suas duas malas pretas. Delas, sempre tira uma bíblia. Sua função é convencer. Converter. O Brasil acaba de entrar nessa lista. Pernambuco foi o único destino dessa primeira viagem. Em uma semana, ele percorreu todas as unidades prisionais do Grande Recife. "Por mais estranho que pareça, me sinto à vontade nesses lugares. Não preciso me esforçar para mostrar que eles são pecadores. Não é só dentro de uma prisão que existem pessoas sem liberdade. Aqui fora, muitos também estão presos. Estão presos ao dinheiro, ao sexo, às drogas e a violência", fala o missionário, olhando para a Rua da Aurora. Ele encontrou no Recife a dualidade entre violência e fé. A mesma que conduziu sua vida. Uma estranha ligação. "Sei que aqui embaixo existem pessoas que estão armadas, que podem matar alguém mais tarde e que ao mesmo tempo trazem o nome de Jesus em todos os cantos. Em adesivos, em camises, nos carros# existe um vazio muito grande por trás disso".

O inglês foi trazido ao Recife pelo Exército da Salvação, em parceira com um grupo formado por vários segmentos de igrejas evangélicas. Cumpriu sua função. Repetiu sua história o quanto pôde. Nesse exato momento ele conseguiu chegar até você. Independentemente de do seu declarado objetivo de evangelização, o ex-lutador é um dos poucos que tem coragem de contar abertamente a sua história e assim, inverter o foco comum das discussões sobre a violência. Ele não é a vítima. E ainda assim, é um exemplo claro de que a violência também pode destruir a vida de quem está do outro lado. Talvez também seja um exemplo de que, de algum modo, as pessoas podem sim mudar. "Hoje eu sou casado, tenho dois filhos e uma família perfeita. Mas não mereço isso", diz, com um tom amargo de quem fala em "libertação" mas ainda está preso ao próprio passado.


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

REPORTAGEM // No m² mais caro do Recife (parte 2)


Esta foto é do último dia 2 de agosto. A paisagem da varanda de um dos prédios de luxo da Avenida Boa Viagem - onde o metro quadrado, atualmente, está em torno de R$ 9 mil. Observando a imagem com atenção vemos que o pequeno depósito que guardava velhas bolas de tênis, raquetes quebradas, equipamentos enferrujados e vidas sem rumo não existe mais. Depois das histórias dos seus moradores terem sido contadas na série "As veias abertas do Recife", ele foi destruído. O seu último morador foi Evaldo Cavalcanti. Ele morava no interior de Goiás e viu imagens da praia de Boa Viagem pela televisão. No texto abaixo, está tudo o que a televisão não mostrou.


A CIDADE DO PESADELO

"Eu andei sem destino, perdi a razão / na estrada da vida, fui na contramão / mergulhei de cabeça no abismo sem fim /loucura e tristeza eram parte de mim / a ponte entre a vida e a morte, eu cruzei / e do outro lado, eu vi os meus pedaços no chão". Esse é um trecho de uma canção evangélica que Evaldo Cavalcanti não lembra o nome. Mas não esquece seus versos. "Essa música é a história da minha vida", diz - em tom de melancolia e tristeza -, o jovem de 25 anos. Sentado na sombra de uma árvore na praia de Boa Viagem, Evaldo cantou e contou um pouco da sua história e, sobretudo, do pior ano da sua vida: 2006.

Mas esta história começa há exatamente um ano. Longe daqui...

Um imenso mar azul. Os luxuosos edifícios. As pessoas se divertindo na praia, dançando no carnaval, tomando água de coco tranqüilas no calçadão. O jovem Evaldo Cavalcanti, aos 24 anos, ficou fascinado ao ver Recife pela primeira vez. Ele estava há mais de dois mil quilômetros. Sentado em frente a uma televisão na cidadezinha de Aragarças,no interior de Goiás. Os dias passaram e aquela grande e bela cidade do comercial da TV não saia mais da cabeça e muito menos dos sonhos de Evaldo.

O sonho de Evaldo era o pesadelo de Samuel de Alencar - um jovem da mesma idade, mas que desde os 16 anos vivia pelas ruas do Recife. Enquanto Evaldo via o mar pela TV, Samuel morava a poucos metros dele. Quanto aos edifícios luxuosos da beira-mar, eram algo igualmente distante e irreal para os dois. O garoto pernambucano morava dentro de um pequeno depósito com menos de dois metros quadrados entre as quadras de tênis da orla de Boa Viagem. Dormia e trocava de roupas entre bolas de tênis, utensílios de limpeza e pedaços de papelão.

Um ano passou. E o jovem serralheiro goiano juntou suas economias e, com R$ 650,00, tomou coragem para se aventurar rumo ao desconhecido. Deixou para trás pai, mãe, dois filhos e uma vida simples, mas estável. Tudo para realizar o sonho de conhecer o mar. "Quando o ônibus chegou, eu pedi para descer e peguei a primeira Van para apraia de Boa Viagem. Foi uma alegria", relembra Evaldo. À noite, para não gastar dinheiro, dormiu na rua. Era para ter sido só por uma noite.

"Meu sonho virou pesadelo. Nesses cinco meses que vivi no Recife, fui me tornando um morador de rua. O dinheiro e as roupas acabaram. Não consegui emprego e nunca vi uma violência como a daqui", conta Evaldo, que presenciou o assassinato do universitário Rafael Dubeux,no dia 19 de novembro, numa das quadras de tênis da avenida Boa Viagem.

Foi justamente no cenário que se tornou o símbolo da desigualdade social intríseca do Recife que o goiano encontrou abrigo. "Conheci um professor de tênis e ele me disse para eu vir pra cá, onde teria um lugar para dormir e conseguiria ganhar dinheiro para comer", conta Evaldo, agora conhecido apenas por "Goiás".

Quando chegou às quadras de tênis, o pequeno depósito estava vazio. Hoje não está mais. "Goiás" mora lá há cinco meses, enquanto espera uma nova chance da vida. "Um emprego ou um violão" - sonha. Para seguir na sua "estrada da vida..."

O EPÍLOGO
"Goiás" morou na casinha das quadras de tênis por mais de um ano. Porém, neste caso, a aproximação com o esporte não foi suficiente para dar um novo rumo à sua vida. A degradação humana e moral iniciada com a viagem entre Aragarças e o Recife condenou Evaldo. O choque de realidades de Boa Viagem o transformou em traficante de drogas. Primeiro atuava como "avião", repassando pequenas quantidades entre uma partida e outra de tênis, quando trabalhava como boleiro. Tempos depois, ao voltar lá, ouvi apenas os relatos: "Ele começou a ganhar dinheiro. Saiu do depósito, alugou um apartamento na favela e até com carro apareceu por aqui. Mas acabou se dando mal, foi preso e levado para o Aníbal Bruno".

Uma história que se repete diariamente. Mudam os nomes e os rostos. Quase nunca o final.

Nunca mais tive notícias de "Goiás".


* a foto acima é de Nando Chiappetta/DP

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

REPORTAGEM // A vida no m² mais caro do Recife


Este é um pequeno depósito construído entre as quadras públicas de tênis na praia de Boa Viagem. Um cubículo escuro que já serviu de casa para dois jovens. Duas histórias de miséria no metro quadrado mais caro do Recife. Esta é a primeira, publicada na série "As veias abertas do Recife", em dezembro de 2005.

MEU AMIGO SAMUEL
Ele mora na Avenida Boa Viagem, a alguns passos do mar, em um dos metros quadrados mais caros da cidade. Durante o dia, divide-se entre a praia, a prática do tênis e a pescaria. Observando por este ângulo, seria uma vida digna dos bon vivants. Mas Recife definitivamente não é uma cidade que deve ser interpretada por um único ângulo. Quando anoitece, a praia fica vazia e as luzes dos refletores das quadras de tênis se apagam, é então que se pode enxergar a verdadeira condição de vida de Samuel de Alencar. Um jovem de 25 anos que mora nas ruas desde os 16. Sozinho, ele se encolhe dentro de uma apertada casinha de bomba d'água localizada entre as quadras, que funciona como um depósito para bolas, baldes, vassouras e outros utensílios de manutenção das quadras. O lugar não chega a ter dois metros quadrados.

"À noite, sinto muita solidão. Mas vou fazer o quê? A vida é assim mesmo", conforma-se Samuel, acostumado a transitar entre realidades opostas. A desigualdade social o acompanha de perto, já que vive em meio a uma área nobre e construiu sua forma atual de sobrevivência dentro de um esporte tradicionalmente elitista. Ele trabalha como boleiro, uma espécie de catador de bolas durante aulas e partidas de tênis. Por meia hora de trabalho numa aula, recebe R$ 1. No final do dia, consegue juntar, em média, R$ 15, dos quais gasta R$ 10 com alimentação. "Para poder trabalhar com o tênis, é preciso estar bem alimentado, com café-da-manhã, almoço e jantar. Se não tiver isso, não consigo ficar em pé. Às vezes, quando não tenho dinheiro pra comer, as pessoas acham que estou com preguiça ou com má vontade. Mas é falta de força mesmo", conta Samuel.

O complexo de quadras onde Samuel trabalha, tem o seu convívio social e dorme é o mais claro exemplo de que riqueza e miséria não só estão lado a lado, como ocupam o mesmo lugar no espaço. Uma geração inteira de tenistas promissores surgiu ali, com garotos vindos dos bolsões de pobreza inseridos dentro da luxuosa Boa Viagem. A história se repete diariamente. Eles começam como boleiros, logo ganham uma raquete usada de presente, começam a bater bola nas horas vagas, vão aprendendo os movimentos, aperfeiçoando a técnica com os mais velhos, e - quando se percebe - já estão disputando campeonatos e trabalhando como professores (o valor de uma aula de 30 minutos é R$ 10). "Jogar tênis tira o stress e nos faz esquecer todos os problemas. Às vezes, na hora do almoço, sem dinheiro pra comer, pego a raquete, uma bola, e vou para o paredão. Lá pelo menos, alimento a mente", diz Samuel.


O COMEÇO DA HISTÓRIA
Talvez as lições do esporte acabem sendo mesmo um incentivo para o jovem continuar seu jogo diário contra o destino. Um jogo em que ele nunca venceu, nem teve chance. Em 1980, Samuel nasceu em um casa de três vãos em Olinda, que dividia com a mãe e mais sete irmãos. "A casa não tinha nada. Nem móvel, nem banheiro, nem cama. Eram apenas os colchões espalhados pelo chão", relembra. Aos 14 anos, quando estava na 5ª série, precisou abandonar a escola para vender picolé e cachorro-quente pelas ruas - numa tentativa de ajudar o orçamento da família. Seu irmão mais velho também no desespero de melhorar a vida da mãe e dos irmãos, seguiu para o mundo do crime. Acabou assassinado. "Foi o pior dia da minha vida", relembra o boleiro.

Não demorou muito para ele decidir viver sozinho na rua, vagando entre os bairros, dormindo onde dava. Entre as suas andanças, conheceu uma garota com quem passou a dividir as noites e com quem acabou tendo um filho. Um filho que nunca conheceu. "Na hora em que ela pariu, o Samu a levou e eu nunca mais tive notícia nem dela, nem do meu filho", conta Samuel, com a cabeça baixa. Essa é uma das feridas abertas do seu passado. Pior do que o arrependimento, talvez seja a sensação de impotência. "Às vezes penso em procurá-la. Mas pra quê ? O que eu posso fazer por eles ?", reflete o jovem que, ainda acredita, numa virada nesse jogo: "Estou fazendo tudo certo. Trabalhando e tentando mudar. Sei que as coisas podem melhorar um pouco".

*A primeira foto, das quadras, é de Juliana Leitão/DP. A segunda é uma reprodução "caseira" da foto de Alcione Ferreira/DP.

ANÁLISE // Rita, o reencontro

Em certas e raras situações, o jornalismo proporciona o reencontro entre o repórter e o personagem. Um dia, um mês, um ano depois... para mim estabelecer esta relação sempre foi difícil. É preciso se aproximar, mas também é fundamental manter distância. Como fazer isso? Simplesmente não há uma resposta pronta. Resta tentar entender/sentir o momento e não forçar a barra. Esta linha é sempre tênue.

"Dessa vez, não vou falar nada. Minha foto saiu em todos os jornais e eu não ganhei nada com isso. Ninguém veio me ajudar. Meus filhos não me procuraram. Não mudou nada na minha vida. Continuo aqui".

Foi assim que Rita Gonçalves nos recebeu (estava mais uma vez ao lado da fotógrafa Alcione Ferreira)um ano depois da publicação do especial "As veias abertas do Recife". Menos aberta, mais amarga. Com razão.

Muitas vezes, o entrevistado cria expectativas exageradas em relação a uma matéria de jornal, uma reportagem na tv... e, quase sempre, não está preparado para uma reação negativa. Acontece.

Rita imaginava que, ao ler o texto de 2005, os seus filhos poderiam mudar de postura, resgatá-la daquele cenário degradante e ainda mais assustador um inverno depois. Aconteceu o oposto. "Disseram que eu fui ridícula em aparecer no jornal", desabafou a ex-prostituta(em uma frase que, não lembro exatamente o motivo, optei por não incluir na segunda reportagem).

Talvez resumisse tudo. O tempo que, no fundo, não passou entre 2005 e 2006.

Sem o desabafo direto, o mesmo sentimento foi contado com outras palavras. Abaixo, coloco alguns trechos:


UM ANO DEPOIS...

No momento de fragilidade em que foi fotografada chorando, ela falava dos filhos que a deixaram pra trás. Do abandono. Da extrema pobreza. Da desilusão. Dos sonhos que não passaram de sonhos. Da vida que sequer deveria ser chamada de vida. Do passado...que ainda não passou.
(...)
Exatamente um ano depois, reencontramos a mesma Rita em sua casa - entre as paredes úmidas sem pintura e os velhos móveis amontoados se equilibrando com cada vez mais dificuldade, por trás dos panos e remendos encardidos que encobrem improvisos e embaixo da lona plástica que protege das goteiras e dos pedaços de telhado que, "sabe Deus como", resistiu a mais um inverno.
(...)
Estamos no Bairro do Recife, a poucos metros do Paço Alfândega e do Porto Digital. No segundo andar de um prédio que venceu o tempo. Ou melhor, foi derrotado por ele. Abandonado. Para quem olha de fora, é difícil acreditar que alguém vive ali. Para quem olhar por dentro, é impossível.
(...)
Lá dentro, a estranha impressão de que o tempo simplesmente não passou. Numa das paredes, resiste um calendário de 2005. No varal que cruza o pequeno cômodo em que Rita vive, a mesma camisa que ela usava ano passado. Nos olhos dela, a mesma desconfiança que logo se abre, se rende, se umedece - vira tristeza.
(...)
Sete pessoas continuam vivendo nos cubículos do segundo andar, cujo aluguel diminuiu de R$ 200,00 para R$ 150,00. Agora, nem a proprietária vai até lá buscar o dinheiro, que passou a ser depositado por Rita. Embaixo, uma velha placa de "vende-se". "Faz mil anos que essa placa está aí. As pessoas vêm aqui, olham e não voltam", conta a moradora que ainda espera pela sua vez de ir embora dali e nunca mais voltar.

"Espero que seja antes do próximo inverno" - disse Rita. Pela segunda vez

terça-feira, 23 de agosto de 2011

REPORTAGEM // Rita


"Isso é a vida", lamentou Rita Gonçalves, depois de tomar um pouco de fôlego, encher o peito de ar, procurar forças sabe-se lá onde e tentar conter as lágrimas que já haviam deixado seus olhos pesados, vermelhos, e que já começavam a lhe tomar a voz, a firmeza das palavras e a certeza se isso realmente pode ser chamado de vida. Até aquele instante, Rita mostrava-se uma mulher forte, apesar de tudo. E, ao não resistir às lágrimas, é que pôde se ver - na verdade - o quanto aquela mulher realmente era forte.

O motivo para as lágrimas dela é comum a qualquer mãe: saudade dos filhos. Rita teve três. Dois meninos e uma menina. Sem a menor condição de criá-los, ela permitiu que os pais deles os levassem embora. O único que ela continua sendo responsável é justamente o mais velho, que tem 29 anos e é portador de deficiência mental. "Minha sobrinha toma conta dele. E eu ajudo com R$ 80,00 para pagar o aluguel da casa onde eles vivem, no Coque", conta Rita. Os outros dois acabaram crescendo longe dela, construíramnovas famílias e hoje praticamente ignoram a existência da mãe. "Eu até ligo, mas eles não me atendem", conta, chorando, e completa: "eu sei que o único motivo pra isso é porque eu sou muito pobre".

A dor ela tenta superar com um conformismo social que a realidade lhe impôs como lição fundamental de sobrevivência : "Eles vivem muito bem. Eu nunca poderia dar aquilo pra eles. Então, que seja. Eu rezo por eles todas as noites e agradeço por estarem bem e podendo ter uma vida melhor do que a que eu tive", disse Rita, abrindo um elo com o seu próprio passado, que a fez encontrar e entender o início da sua gradual decadência humana e social. O início do seu fim. Do fim dos seus sonhos. Da suas chances. Do seu futuro. Da Rita que, um dia, a Rita queria ser.

E é nesse retorno ao passado que a história dela resume a essência da profunda desigualdade social do Recife. Rita Gonçalves nasceu em 1947 e cresceu no Córrego do Euclides. A mãe era empregada doméstica. O pai, ela nunca conheceu. Sem nunca ter ido à escola, Rita começou a trabalhar aos 11 anos, para ajudar na cada vez mais desesperadora situação financeira da sua mãe, agora, com três filhos pra criar. O primeiro emprego foi como doméstica de uma família em Casa Forte. Tudo o que ganhava, entregava a sua mãe. "Eu era uma boa filha, sempre fiz tudo para ajudar a minha mãe", desabafa Rita, numa clara relação à sua condição atual, de abandono.

Então, aos 16 anos, Rita cedeu às tentações, às promessas de dinheiro fácil no próspero Bairro do Recife dos anos 60. Tornou-se prostituta. "Não existe nada pior. Nada mais humilhante. Jamais eu deveria ter caído aqui nesse bairro. Nessa vida. Perdi a minha mocidade toda. Nada fiz. Nada tenho", conclui a garota que envelheceu nas ruas do Velho Recife, que viu a decadência do bairro de perto - ou melhor, na própria pele.

Há 42 anos no Bairro do Recife e há 25 dentro de um apertado cubículo de seis metros quadrados, onde ela encaixa uma cama de casal, um armário penso, um ventilador, uma pequena e velha tv, um refrigerador, um fogão, uma mesa e algumas imagens e pôsters de santos católicos. O lugar é escuro, extremamente úmido e mofado. Uma lona armada nas paredes, protege dos pedaços que caem do teto e das goteiras, de qualquer dia de chuva. Também não há água encanada e existe apenas um banheiro para os sete quartos do andar.

Não há fotos, nem dela, nem de ninguém. Não há espelho. Não há relógio - assim, é como se não houvesse passado, presente ou futuro.

RAIO X DO BAIRRO DO RECIFE

925 pessoas

31% de analfabetismo entre adultos acima dos 25 anos

0,3% com mais de 11 anos de estudo

R$ 156,88 - renda per capita do responsável pelo domícilios

8% com água encanada

97.7% com coleta de lixo

0,05 banheiros por pessoa

domingo, 21 de agosto de 2011

Era uma vez o jornalismo...


"Era uma vez o jornalismo..." Uma frase para ser lida duas vezes. Nela, os sentidos antagônicos de "início" e "fim" se completam. A partir de 2005, alguns jornais começavam a transição - que ainda está em curso seis anos depois - entre as notícias do ontem (factuais e cada vez mais envelhecidas com a popularização da internet e das tecnologiais móveis)e as narrativas que passavam a desviar o foco dos fatos para as pessoas. Os personagens e as grandes histórias ganharam espaço nas páginas dos jornais. A velha e quase matemática fórmula do lide (quem diria?) foi deixada de lado pela essência do que se chegou a rotular como jornalismo literário. O jornalismo do "era uma vez...".

Talvez (pelo menos, para mim) o marco zero deste processo no estado tenha sido o especial "As veias abertas do Recife", publicado pelo Diario de Pernambuco entre os dias 11 e 18 de dezembro de 2005 e vencedor do Grande Prêmio Caixa de Jornalismo em 2006. Uma pesquisa do PNAD que detalhava as condições sociais da cidade ganhou vida em textos escritos por André Duarte, Paulo Goethe, Sérgio Miguel Buarque e por mim. Números viraram histórias. Estatísticas se transformaram em pessoas.

Este é o link para ler o primeiro dia do especial: http://www.pernambuco.com/diario/2005/12/11/especial.asp

Se alguém ficar interessado em ler os dias seguintes, é só ir mudando a data no link. Lembrando que é o design do site em 2005.
Nos próximos posts, vou resgatar alguns dos personagens que conheci em um Recife que antes era invisível para mim.




sexta-feira, 19 de agosto de 2011

REPORTAGEM // O Volvo 1976

Em 2002, poucos dias depois de terminar o curso de jornalismo, estava sentado em uma das poltronas rasgadas e empoeiradas de um ônibus Volvo 1976 - cujo motor parecia não ultrapassar os 80 km/h - numa lenta e desgastante viagem de volta, atravessando a estrada, o Sertão e a madrugada entre Itacuruba e Recife. Eram as últimas das 44 horas da minha primeira reportagem assinada como profissional. No caderno, páginas e páginas com anotações, entrevistas, impressões, frases soltas. Estava ali uma história para contar. A primeira.

Quase dez anos depois resgato do meu baú particular de histórias já contadas, a reportagem "A saga de um perdedor" para ser, novamente, a primeira.

Não sei se, no veloz 2011, alguém ainda tem paciência para ler matérias e vinculadas longas de uma época onde sobravam páginas nos jornais.
Ir além dos 140 caracteres, do factual, da notícia e da velocidade da informação...será como fazer uma longa viagem no tempo dentro do velho Volvo 1976
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A SAGA DE UM PERDEDOR

"Esta história de mais uma entre tantas derrotas do folclórico clube pernambucano não será resumida em noventa minutos de futebol e muito menos ridicularizada como de costume. Desta vez, o DIARIO acompanhou todos os momentos que antecederam e sucederam à decisão da segunda divisão do Campeonato Pernambucano ao lado da delegação do Íbis. Foram 44 horas ao lado dos jogadores, percorrendo mais de mil quilômetros de estrada, numa verdadeira viagem à realidade do futebol brasileiro. Afinal, deixando o folclore de lado, o Íbis é apenas mais um entre milhares de clubes pobres, cuja camisa veste a esperança de homens humildes, sacrificados e sonhadores. Brasileiros que por ilusão, ou mesmo por falta de outra opção, escolheram o futebol para tentar mudar de vida, mas por enquanto foram derrotados por ele"

Texto completo:
http://www.pernambuco.com/diario/2002/07/14/esportes4_0.html

A VIAGEM
"O veículo era um Volvo 1986, que segundo o motorista Marcos, "ainda é uma moça". Assim, a moça de Marcos deixou o Alto da Vila da Fábrica, em Camaragibe - atual sede do clube - levando 33 passageiros. Além dos 18 jogadores, dos cinco integrantes da comissão técnica e da nossa equipe de reportagem, havia ainda o chefe da delegação e a sua esposa, dois garotos amigos do grupo, dois estudantes que aproveitaram a carona para ir até Belém de São Francisco e o delegado do jogo da Federação Pernambucana, Arnaldo, que também pegou uma carona com o Pássaro Preto.Antes de deixar o Recife, todos pararam para almoçar e em menos de uma hora devoraram nove galetos completos e 18 litros de refrigerante"

Texto completo: http://www.pernambuco.com/diario/2002/07/14/esportes4_1.html

OS JOGADORES
...Marcone tem o perfil da imensa maioria dos jogadores de futebol brasileiros. Por trás do estilo boleiro - da forma de falar, do jeito de se vestir e de andar copiados dos craques milionários e consagrados - está um garoto de 21 anos, pobre, que cresceu longe das salas de aula no bairro de Caetés 1, em Paulista, e que via o futebol como um conto de fadas, que lhe traria fortuna, fama e felicidade. Porém, o pouco do que conheceu no futebol, deixou-o descrente, quase sem esperanças. "Somos só um produto e nem temos uma vitrine para sermos mostrados. É como em um supermercado, somos aqueles produtos que ficam na prateleira debaixo, que ninguém vê, e ali ficamos esquecidos"

Texto completo: http://www.pernambuco.com/diario/2002/07/14/esportes4_2.html

O CARONA
...Era chegada a hora. Às 13h30, o ônibus deixa Floresta em direção a Itacuruba, numa viagem curta de 32 km. Logo na saída, uma parada no posto de gasolina para comprar gelo. No posto, o plantador de cebolas João Batista pede uma carona até o campo e, mesmo declarando que iria torcer para o Itacuruba, é aceito no ônibus e viaja sentado ao lado do capitão do time, Zé Carlos. A cena é inusitada para um time de futebol profissional: os jogadores em silêncio, concentrados, olhando os pássaros pretos sobrevoarem a estrada como se estivessem saudando o irmão mais famoso, e João falando o tempo todo, da plantação de cebolas, do dia em que tomou banho de mar em Boa Viagem...

Texto completo: http://www.pernambuco.com/diario/2002/07/14/esportes4_3.html

A DERROTA
...O futebol mais uma vez derrotava os sonhos de 18 jogadores. Sentados na grama, eles assistiam à festa dos adversários e a queima dos fogos de artifícios, enquanto o presidente do clube tentava levantar o moral de cada um, garantindo que o trabalho seria mantido e que contava com todos para o futuro do Íbis. Mas não era esse o futuro que eles queriam.

Texto completo: http://www.pernambuco.com/diario/2002/07/14/esportes4_4.html

A DESPEDIDA
Às seis da manhã, o ônibus já estava no Recife e a maioria dos jogadores preferiu descer na avenida Caxangá, onde era mais fácil para voltarem às suas casas. Despediram-se rapidamente, juntaram os trocados para a passagem, colocaram a pequena bagagem embaixo do braço e desceram na parada de ônibus. Dali pra frente, cada um seguiria seu caminho, junto com outros trabalhadores comuns que estavam começando mais um dia de trabalho. Mas, aqueles 18 jogadores do Íbis que durante sete meses se sacrificaram para tentar realizar o mesmo sonho, chegavam ao final de uma longa jornada de trabalho, numa história verdadeira, daquelas que nem sempre acabam com final feliz.

Texto completo: http://www.pernambuco.com/diario/2002/07/14/esportes4_5.html