quinta-feira, 25 de agosto de 2011

REPORTAGEM // No m² mais caro do Recife (parte 2)


Esta foto é do último dia 2 de agosto. A paisagem da varanda de um dos prédios de luxo da Avenida Boa Viagem - onde o metro quadrado, atualmente, está em torno de R$ 9 mil. Observando a imagem com atenção vemos que o pequeno depósito que guardava velhas bolas de tênis, raquetes quebradas, equipamentos enferrujados e vidas sem rumo não existe mais. Depois das histórias dos seus moradores terem sido contadas na série "As veias abertas do Recife", ele foi destruído. O seu último morador foi Evaldo Cavalcanti. Ele morava no interior de Goiás e viu imagens da praia de Boa Viagem pela televisão. No texto abaixo, está tudo o que a televisão não mostrou.


A CIDADE DO PESADELO

"Eu andei sem destino, perdi a razão / na estrada da vida, fui na contramão / mergulhei de cabeça no abismo sem fim /loucura e tristeza eram parte de mim / a ponte entre a vida e a morte, eu cruzei / e do outro lado, eu vi os meus pedaços no chão". Esse é um trecho de uma canção evangélica que Evaldo Cavalcanti não lembra o nome. Mas não esquece seus versos. "Essa música é a história da minha vida", diz - em tom de melancolia e tristeza -, o jovem de 25 anos. Sentado na sombra de uma árvore na praia de Boa Viagem, Evaldo cantou e contou um pouco da sua história e, sobretudo, do pior ano da sua vida: 2006.

Mas esta história começa há exatamente um ano. Longe daqui...

Um imenso mar azul. Os luxuosos edifícios. As pessoas se divertindo na praia, dançando no carnaval, tomando água de coco tranqüilas no calçadão. O jovem Evaldo Cavalcanti, aos 24 anos, ficou fascinado ao ver Recife pela primeira vez. Ele estava há mais de dois mil quilômetros. Sentado em frente a uma televisão na cidadezinha de Aragarças,no interior de Goiás. Os dias passaram e aquela grande e bela cidade do comercial da TV não saia mais da cabeça e muito menos dos sonhos de Evaldo.

O sonho de Evaldo era o pesadelo de Samuel de Alencar - um jovem da mesma idade, mas que desde os 16 anos vivia pelas ruas do Recife. Enquanto Evaldo via o mar pela TV, Samuel morava a poucos metros dele. Quanto aos edifícios luxuosos da beira-mar, eram algo igualmente distante e irreal para os dois. O garoto pernambucano morava dentro de um pequeno depósito com menos de dois metros quadrados entre as quadras de tênis da orla de Boa Viagem. Dormia e trocava de roupas entre bolas de tênis, utensílios de limpeza e pedaços de papelão.

Um ano passou. E o jovem serralheiro goiano juntou suas economias e, com R$ 650,00, tomou coragem para se aventurar rumo ao desconhecido. Deixou para trás pai, mãe, dois filhos e uma vida simples, mas estável. Tudo para realizar o sonho de conhecer o mar. "Quando o ônibus chegou, eu pedi para descer e peguei a primeira Van para apraia de Boa Viagem. Foi uma alegria", relembra Evaldo. À noite, para não gastar dinheiro, dormiu na rua. Era para ter sido só por uma noite.

"Meu sonho virou pesadelo. Nesses cinco meses que vivi no Recife, fui me tornando um morador de rua. O dinheiro e as roupas acabaram. Não consegui emprego e nunca vi uma violência como a daqui", conta Evaldo, que presenciou o assassinato do universitário Rafael Dubeux,no dia 19 de novembro, numa das quadras de tênis da avenida Boa Viagem.

Foi justamente no cenário que se tornou o símbolo da desigualdade social intríseca do Recife que o goiano encontrou abrigo. "Conheci um professor de tênis e ele me disse para eu vir pra cá, onde teria um lugar para dormir e conseguiria ganhar dinheiro para comer", conta Evaldo, agora conhecido apenas por "Goiás".

Quando chegou às quadras de tênis, o pequeno depósito estava vazio. Hoje não está mais. "Goiás" mora lá há cinco meses, enquanto espera uma nova chance da vida. "Um emprego ou um violão" - sonha. Para seguir na sua "estrada da vida..."

O EPÍLOGO
"Goiás" morou na casinha das quadras de tênis por mais de um ano. Porém, neste caso, a aproximação com o esporte não foi suficiente para dar um novo rumo à sua vida. A degradação humana e moral iniciada com a viagem entre Aragarças e o Recife condenou Evaldo. O choque de realidades de Boa Viagem o transformou em traficante de drogas. Primeiro atuava como "avião", repassando pequenas quantidades entre uma partida e outra de tênis, quando trabalhava como boleiro. Tempos depois, ao voltar lá, ouvi apenas os relatos: "Ele começou a ganhar dinheiro. Saiu do depósito, alugou um apartamento na favela e até com carro apareceu por aqui. Mas acabou se dando mal, foi preso e levado para o Aníbal Bruno".

Uma história que se repete diariamente. Mudam os nomes e os rostos. Quase nunca o final.

Nunca mais tive notícias de "Goiás".


* a foto acima é de Nando Chiappetta/DP

2 comentários:

Anônimo disse...

Mais um relato dos contrastes sociais deste Brasil a fora. Samuel, Evaldo e tantos outros perdidos no mundo e desencontrados no Recife. Belo conto, triste história...

Maurício Penedo disse...

As derrotas se sobrepõem.