sexta-feira, 26 de agosto de 2011

REPORTAGEM // Todas as lutas de Tony


"Shane D'Souza estava praticamente irreconhecível. Os guardas o arrastaram pelo chão da cela e depositaram seu corpo quebrado em uma maca suja. Ele fora espancado, golpeado, cortado, estuprado e estragado de todas as formas possíveis. Poças de sangue formavam grandes manchas púrpuras no concreto frio. Quando o levaram para a ala do hospital, deixou para trás uma trilha sinuosa de mutilação no corredor escuro. Todos sabíamos quem era o culpado pelo ataque àquele jovem. Ninguém disse uma palavra. As autoridades não se importavam. Não haveria inquérito ou sequer punição para o agressor. Nada de justiça para o meu amigo. Era um dia como outro na prisão. Éramos assassinos, traficantes, gângsters, pedófilos, ladrões, estupradores, terroristas e trapaceiros: um saco repleto com a mistura da depravação humana; os piores dos piores"

...Numa mesa de centro, entre os sofás simples do saguão de entrada do antigo Hotel Plaza Recife, na Rua da Aurora, estão espalhados os dois principais jornais do estado. Mas a descrição do parágrafo acima não está em nenhuma reportagem daquela segunda-feira. Não era uma notícia. Não aconteceu em nenhum dos presídios pernambucanos. Até poderia - já que agressões e mortes com tais requintes de violência extrema também fazem parte do cotidiano de algumas unidades penais do estado. Mas não era o caso. A cena da morte do jovem Shane faz parte de uma realidade distante. Distância no sentido de tempo e espaço. Uma história presa em um passado que, simplesmente, não passou. E que, ao menos para um homem, precisa ser contada e repetida. Um homem que tenta apenas ser comum. Que apenas tenta.

Um exemplar de "Domando o Tigre"está sobre uma mesa atrás da recepção do hotel. O marcador de livros repousa na página 17. Exatamente onde começaria o segundo capítulo. Apesar da calmaria no saguão, o recepcionista Roberto não pode passar muito tempo entretido com a biografia que ganhara um dia antes. "Ele foi tricampeão mundial de kung-fu.Não é pouco coisa. Ele é capaz de mutilar uma pessoa em poucos minutos", conta Roberto. Instantes depois, o recepcionista repete a história - ou o pouco que leu nas primeiras páginas - para outro funcionário do Plaza. Repete a história da vida de Tony Anthony.

A descrição que abriu esta reportagem é justamente o primeiro parágrafo do livro que Roberto está lendo. "Domando o Tigre" é uma biografia de Tony Anthony. O relato é de dentro da prisão central de Nicósia, no Chipre. Tony foi preso em 1990. Um ano antes, tornava-se tricampeão mundial de kung-fu. Mas já não se dedicava exclusivamente a carreira esportiva. Também trabalhava como guarda-costas no alto escalão do sistema de proteção particular na Inglaterra. Assim tornou-se chefe de segurança do embaixador da Arábia Saudita no Reino Unido, Itália e Chipre, Amin Fahed. A estreita ligação de Amin com as redes internacionais de jogo e prostituição acabou colocando Tony em um caminho inevitável de espancamentos, assassinatos e assaltos.

O 'homem com sede desangue' bebe chá

Era uma tarde de segunda-feira movimentada na Rua da Aurora. Passava das 16h30 quando uma kombi branca estacionou em frente ao hotel. Dentro dela, havia um ventilador e algumas caixas com cartazes e livros. Do veículo, desce um homem branco, bochechas rosadas e suadas, olhar amigável, expressão cansada, puxando duas pequenas malas pretas com rodinhas. Uma imagem nada assustadora. Era realmente o que pode se chamar de um homem comum. Difícil imaginá-lo "mutilando" alguém em poucos minutos. Mas a pequena foto numa das orelhas do livro não deixava dúvidas: era mesmo Tony Anthony que acabava de retornar ao Plaza, onde estava hospedado desde o final de semana. Já no sagüão, ele olhou para o relógio com cara de preocupação. Perguntou se a entrevista poderia ser feita no restaurante. Disse que estava cansado e precisava beber algo. Na contracapa do seu livro, um texto com pretensões épicas e tom inevitável de sensacionalismo, define Anthony como um homem com sede de sangue. Mas ao chegar à mesa - como um bom inglês - ele pediu um chá. Escolheu o de erva doce.

E assim, fantasmas viram personagens

Mas afinal o que o ex-tricampeão mundial de kung-fu, o violento guarda-costas e o criminoso internacional estaria fazendo em um hotel simples do centro do Recife? A verdade é que essas três definições já não se aplicam à Tony Anthony. São apenas personagens da sua vida. Ou, pelo menos, dos primeiros capítulos desta. Até aquele momento, praticamente tudo o que se podia saber sobre o entrevistado estava escrito na tal contra-capa do livro que lançou no ano passado. Ou na já citada descrição da morte do seu melhor amigo na prisão. Morte que ele jurou vingar com brutalidade semelhance. Essa vingança é o ponto de partida do livro, mas na verdade é marco que divide a vida de Tony Anthony em duas partes. A sua história em duas vidas. A primeira narra a construção de homem violento. Enquanto bebe o seu chá, Tony conta os fatos com uma certa frieza. De forma metódica. Sem demonstrar emoção. Como se não passasse de uma ficção. Como se realmente o menino aterrorizado e espancado pelo avô ou o jovem perdido e violento fossem mesmo meros personagens. Talvez isso até se explique pelo cansaço de repetir pela enésima vez essas passagens da sua vida. Mas era justamente essa a razão que o trazia até ali. Até aqui. O tom muda um pouco quando ele relata a morte da namorada em um acidente de carro na Inglaterra. "A partir desse dia, me tornei ainda mais violento. Passei a exagerar nos espancamentos. Minha reação era além dos limites. Quebrava as pessoas em várias partes. Matei algumas delas sem qualquer necessidade", confessa, com a naturalidade de quem convive com um passado que preferiu não esquecer.


De repente, o mal vira bem.

A vingança contra o assassino de Shane, no entanto, não aconteceu. Antes disso, o prisioneiro conheceu um missionário da Irlanda do Norte, Michael Wright, que começou a escrever cartas para Tony. "Eu me aborrecia quando via os prisioneiros tornando-se religiosos. Para mim, aquilo era um sinal de fraqueza. Só aceitei encontrar com Michael pela primeira vez, porque os outros presos diziam que essas visitas aconteciam em um local onde se vendia coca-colas e sabia que ele acabaria pagando uma pra mim", expõe o ex-lutador, que teve formação budista. Sim, a partir desse ponto, a história de Anthony se mistura com a de milhares de outros prisioneiros que acabam sendo "evangelizados" durante o cumprimento da pena. Claro que Marcos Wright não mandava cartas apenas para Tony. "Fiquei me perguntando porque alguém se preocuparia comigo se até mesmo os meus amigos e a minha família já haviam me abandonado", conta Anthony, deixando claro a fragilidade em que os presos se encontram na hora em que recebem cartas como as de Wright ou visitas de grupos religiosos. A partir daqui, até o tom de voz dele muda. A emoção aparece. Talvez, tão metódica quanto a frieza dos minutos anteriores. Ele está livre. Desde que deixou a prisão da Nicósia, Tony abandonou completamente o kung-fu. Hoje, usa o velho clichê religioso do "Jesus ensina a dar a outra face". Sim, Tony é mais um prisioneiro que virou missionário. Mais um "homem mau" que virou "homem bom". Ele sabe que repetir sua história não trará o perdão incondicional da parte da sociedade que torce o nariz para sua religião. Pregadores como ele aprenderam a conviver com a devoção de alguns e a ironia de outros. Sua história e sua redenção são como a sua fé. Ele acredita. Mas você não precisa acreditar.

O final da história que não termina

Tony fundou a Avanti Ministries Limited e trabalha com várias igrejas evangélicas da Inglaterra. Publicou o livro "Domando o tigre" em 2004 e já viajou 53 países com suas duas malas pretas. Delas, sempre tira uma bíblia. Sua função é convencer. Converter. O Brasil acaba de entrar nessa lista. Pernambuco foi o único destino dessa primeira viagem. Em uma semana, ele percorreu todas as unidades prisionais do Grande Recife. "Por mais estranho que pareça, me sinto à vontade nesses lugares. Não preciso me esforçar para mostrar que eles são pecadores. Não é só dentro de uma prisão que existem pessoas sem liberdade. Aqui fora, muitos também estão presos. Estão presos ao dinheiro, ao sexo, às drogas e a violência", fala o missionário, olhando para a Rua da Aurora. Ele encontrou no Recife a dualidade entre violência e fé. A mesma que conduziu sua vida. Uma estranha ligação. "Sei que aqui embaixo existem pessoas que estão armadas, que podem matar alguém mais tarde e que ao mesmo tempo trazem o nome de Jesus em todos os cantos. Em adesivos, em camises, nos carros# existe um vazio muito grande por trás disso".

O inglês foi trazido ao Recife pelo Exército da Salvação, em parceira com um grupo formado por vários segmentos de igrejas evangélicas. Cumpriu sua função. Repetiu sua história o quanto pôde. Nesse exato momento ele conseguiu chegar até você. Independentemente de do seu declarado objetivo de evangelização, o ex-lutador é um dos poucos que tem coragem de contar abertamente a sua história e assim, inverter o foco comum das discussões sobre a violência. Ele não é a vítima. E ainda assim, é um exemplo claro de que a violência também pode destruir a vida de quem está do outro lado. Talvez também seja um exemplo de que, de algum modo, as pessoas podem sim mudar. "Hoje eu sou casado, tenho dois filhos e uma família perfeita. Mas não mereço isso", diz, com um tom amargo de quem fala em "libertação" mas ainda está preso ao próprio passado.


3 comentários:

Paula Barros disse...

Fred, não tenho lido as últimas postagens com a atenção que gosto. Mas voltarei a ler com calma.
abraço!

Maurício Penedo disse...

Intrigante. No aguardo!

Maurício Penedo disse...

Que história impressionante. Digna dos filmes clichês norte-americanos. Fica claro, enfim, sobre quem inspira quem, ou o que inspira o que.