terça-feira, 23 de agosto de 2011

REPORTAGEM // Rita


"Isso é a vida", lamentou Rita Gonçalves, depois de tomar um pouco de fôlego, encher o peito de ar, procurar forças sabe-se lá onde e tentar conter as lágrimas que já haviam deixado seus olhos pesados, vermelhos, e que já começavam a lhe tomar a voz, a firmeza das palavras e a certeza se isso realmente pode ser chamado de vida. Até aquele instante, Rita mostrava-se uma mulher forte, apesar de tudo. E, ao não resistir às lágrimas, é que pôde se ver - na verdade - o quanto aquela mulher realmente era forte.

O motivo para as lágrimas dela é comum a qualquer mãe: saudade dos filhos. Rita teve três. Dois meninos e uma menina. Sem a menor condição de criá-los, ela permitiu que os pais deles os levassem embora. O único que ela continua sendo responsável é justamente o mais velho, que tem 29 anos e é portador de deficiência mental. "Minha sobrinha toma conta dele. E eu ajudo com R$ 80,00 para pagar o aluguel da casa onde eles vivem, no Coque", conta Rita. Os outros dois acabaram crescendo longe dela, construíramnovas famílias e hoje praticamente ignoram a existência da mãe. "Eu até ligo, mas eles não me atendem", conta, chorando, e completa: "eu sei que o único motivo pra isso é porque eu sou muito pobre".

A dor ela tenta superar com um conformismo social que a realidade lhe impôs como lição fundamental de sobrevivência : "Eles vivem muito bem. Eu nunca poderia dar aquilo pra eles. Então, que seja. Eu rezo por eles todas as noites e agradeço por estarem bem e podendo ter uma vida melhor do que a que eu tive", disse Rita, abrindo um elo com o seu próprio passado, que a fez encontrar e entender o início da sua gradual decadência humana e social. O início do seu fim. Do fim dos seus sonhos. Da suas chances. Do seu futuro. Da Rita que, um dia, a Rita queria ser.

E é nesse retorno ao passado que a história dela resume a essência da profunda desigualdade social do Recife. Rita Gonçalves nasceu em 1947 e cresceu no Córrego do Euclides. A mãe era empregada doméstica. O pai, ela nunca conheceu. Sem nunca ter ido à escola, Rita começou a trabalhar aos 11 anos, para ajudar na cada vez mais desesperadora situação financeira da sua mãe, agora, com três filhos pra criar. O primeiro emprego foi como doméstica de uma família em Casa Forte. Tudo o que ganhava, entregava a sua mãe. "Eu era uma boa filha, sempre fiz tudo para ajudar a minha mãe", desabafa Rita, numa clara relação à sua condição atual, de abandono.

Então, aos 16 anos, Rita cedeu às tentações, às promessas de dinheiro fácil no próspero Bairro do Recife dos anos 60. Tornou-se prostituta. "Não existe nada pior. Nada mais humilhante. Jamais eu deveria ter caído aqui nesse bairro. Nessa vida. Perdi a minha mocidade toda. Nada fiz. Nada tenho", conclui a garota que envelheceu nas ruas do Velho Recife, que viu a decadência do bairro de perto - ou melhor, na própria pele.

Há 42 anos no Bairro do Recife e há 25 dentro de um apertado cubículo de seis metros quadrados, onde ela encaixa uma cama de casal, um armário penso, um ventilador, uma pequena e velha tv, um refrigerador, um fogão, uma mesa e algumas imagens e pôsters de santos católicos. O lugar é escuro, extremamente úmido e mofado. Uma lona armada nas paredes, protege dos pedaços que caem do teto e das goteiras, de qualquer dia de chuva. Também não há água encanada e existe apenas um banheiro para os sete quartos do andar.

Não há fotos, nem dela, nem de ninguém. Não há espelho. Não há relógio - assim, é como se não houvesse passado, presente ou futuro.

RAIO X DO BAIRRO DO RECIFE

925 pessoas

31% de analfabetismo entre adultos acima dos 25 anos

0,3% com mais de 11 anos de estudo

R$ 156,88 - renda per capita do responsável pelo domícilios

8% com água encanada

97.7% com coleta de lixo

0,05 banheiros por pessoa

Um comentário:

Maurício Penedo disse...

"Não há fotos, nem dela, nem de ninguém. Não há espelho. Não há relógio - assim, é como se não houvesse passado, presente ou futuro.

É exatamente esse sentimento que permeia todos os muros e edificações do Bairro do Recife. Palavra de quem o percorreu e o fotografou apenas por 1 dia, e que planeja ir lá para completar a corrida das fotos. Parece que tudo ali condensa beleza e imobilismo; esquecimento e nostalgia. Ficou suspenso no tempo. E assim como as estruturas, ficaram as pessoas.