segunda-feira, 5 de setembro de 2011

REPORTAGEM // O milagre da maçã (Manari, a primeira viagem)

Numa armação enferrujada, deveria estar a placa que avisa o início - ou pelo menos a proximidade da cidade de Manari. setenta e seis quilômetros de asfalto e buracos da PE-270 ficaram para trás. Mais de 300 km do Recife. Na estrada que leva do litoral ao Sertão de Pernambuco, incontáveis placas verdes anunciam cidades e distâncias em letras brancas. Manari não aparece em nenhuma delas. Talvez por esquecimento. Talvez por não ser um lugar para onde alguém pense em ir. Distante demais da capital e de qualquer outro pólo de desenvolvimento do interior. Não existem razões econômicas ou culturais que levem alguém até ali. Até aquela armação metálica vazia. Que funciona apenas como uma moldura enferrujada para um céu quase sempre azul. Que avisa a chegada a lugar nenhum.


O silêncio na estrada reforça essa sensação de distância. De isolamento. Geográfico e social. Ouve-se o barulho de um motor. Ainda longe, uma moto se aproxima. Passa veloz. Desaparece. Segue pela estrada. Manari não segue. O asfalto termina a alguns metros dali. Em um trevo com mato crescendo por baixo do concreto. É de areia e poeira o caminho que resta pela frente. Vinte e cinco quilômetros que se arrastam lentamente em uma hora de percurso até a área urbana do município.

Pela areia, homens de chapéu puxando cavalos e carroças deixam suas pegadas. Andam lentamente. São trabalhadores rurais. Dos 13 mil habitantes de Manari, quase dez mil vivem na área dos sítios. A agricultura é de subsistência. Pequenas plantações de feijão e mandioca surgem no cenário predominantemente verde pelas chuvas da época. Bodes, cavalos, bois, guinés e urubus cortam o caminho.

A área urbana de Manari se aproxima. Os paralelepípedos avisam o início da cidade. Duas placas de propaganda de obras públicas saltam aos olhos: "Luz para Todos - investimento de R$212.811,25". "Pavimentação das vias públicas - investimento: R$103.974,99". Esta última, aliás, explica os paralelepípedos. Até bem pouco tempo, as ruas eram de barro. Seria uma ironia quase perversa esperar por placas dotipo: "Bem-vindos a Manari". Aqui começa a cidade com o pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil.


O MILAGRE DA MAÇÃ
Uma maçã. Um canivete. Uma precisão geométrica. A lâmina desenha quatro cortes que dividem a fruta vermelha em oito pedacinhos aparentemente iguais. Olhos atentos acompanham o movimento da lâmina. Sete pares de olhos. Sete crianças que vão estendendo suas mãos de unhas sujas. Vitória é a mais nova. Tem dois anos. Pega sua parte na maçã, leva à boca e dá uma pequena mordida. Demorará alguns minutos até comer tudo. Seus irmãos mais velhos repetem o gesto. Um a um, os pedacinhos vão desaparecendo. Manoel tem 15 anos. É o mais velho. O tempo escrito nas suas mãos parece andar muito mais rápido. Ele não quis sua parte. O homem que cortara a maçã insistiu: "Guarde para comer mais tarde". Manoel cedeu. O "mais tarde" não demorou três minutos.

Gildo é o motorista da equipe de reportagem do Diario que foi até Manari. Enquanto a mãe das sete crianças mostrava os quatro cômodos apertados, sujos e escuros da pequena casa em que eles vivem - na zona rural de Manari -, desviei os olhos para o lado de fora. Na sombra de um pinheiro infrutífero, Gildo estava cercado pelos meninos e meninas, com a pequena faca nas mãos, operando aquele que seria o "milagre da maçã". Uma cena espontânea que reflete um sentimento comum para quem chega até ali: é difícil não se envolver com a realidade de Manari.

Dona Aneci tem 40 anos. O corpo franzino revela fraqueza. Recém-operada de uma ligação de trompas, anda muito devagar, apoiando-se nas paredes. A voz, cansada, não desperdiça palavras: "Não consigo mais trabalhar", lamenta. Aneci nunca foi para a escola e começou a lida no campo aos oito anos de idade. Aos 15, estava casada e grávida pela primeira vez. Ainda teria outras 20 gestações pela frente. Perdeu seis delas e teve 15 filhos. Cinco deles morreram nos primeiros anos de vida vítimas da desnutrição. Os outros dez resistem como podem. Os três mais velhos pegaram o ônibus para São Paulo. Nunca conseguiram um emprego fixo, vivem dos "bicos" na cidade grande e nunca puderam mandar dinheiro para casa.

Os sete que ficaram com a mãe esperampor dias melhores. Uma espera que se equilibra no limite extremo da sobrevivência. Uma bacia de metal com farinha de mandioca e uns pequenos pedaços de carne seca pendurados em um barbante era todo o estoque de comida que existia na casa. Dinheiro praticamente não existe ali. Aneci recebe apenas R$ 95 de Bolsa Família.


A alimentação depende diretamente do leite doado pelo governo e da agricultura de subsistência. A família planta feijão e mandioca nos arredores de casa. Mas a chuva nem sempre ajuda. E a última colheita foi toda perdida. "Tem dias que não tem o que botar na panela. Só a farinha misturada com água". Desesperado, o marido de Aneci também foi embora para São Paulo desde fevereiro. "Da última vez, ele me falou que pelo jeito que estão as coisas por lá, vai ter que voltar a pé para casa".

As lágrimas que pesam nos olhos de Aneci enquanto relata a sua vida dispensariam todos os números e análises do Censo do IBGE e do Atlas do Desenvolvimento Humano. Os R$ 30,43 de renda per capita; os 89,9% de pobres; os 63,9% de adultos analfabetos; a escolaridade média de 1,3 anos; a morte antes dos cinco anos de 120 crianças para cada mil nascidas.

Toda a miséria está ali. Na falta de comida; na necessidade de remédios; nos retalhos de colchão velho espalhados pelo chão de barro onde as crianças dormem; na falta de um banheiro (os banhos são na cisterna e o resto, no mato mesmo). O pior lugar para se viver é aquele em que sequer podemos chamar a existência de vida. Mas os olhos de quem passa não enxergam a mesma realidade dos de quem fica.


Um sorriso - "A vida hoje está muito melhor", garante Aneci - tomando por base algo que parece invisível para quem chega ali pela primeira vez. Como? Onde? Por quê? Ela então começa a explicar o que mudou nos últimos anos. O acesso à assistência médica, a cisterna que junta água no quintal de casa, a multimistura que evita a desnutrição infantil, a escola que educa os filhos#

"Meus filhos que morreram não tinham médico, nem alimento. Hoje, os meninos dificilmente teriam morrido. Nunca mais ouvi falar de uma criança que tenha morrido doente ou desnutrida por aqui", relata Aneci.

Manoel, 15 anos e aluno da 1º ano do ensino médio , assumiu precocemente a função de "homem da casa" e lembra com um sorriso infantil das longas caminhadas em busca de água: "Saíamos ainda de madrugada. A gente tinha que andar umas três horas para ir, encher os baldes e voltar. Todos os dias...". Hoje, usa esse tempo plantando feijão. Está sempre dando uma olhada na terra. Diz que vai colher três sacos neste mês. Difícil foi convencer Manoel a tirar a foto ao lado da família. Queria colocar a "roupa social" para ser fotografado.

Grandes mudanças. Pequenos milagres. Feitos com a mesma essência daquela da maçã. Quando o "estar" se transforma em "integrar". O "dividir", em "multiplicar". E foi assim que o fato de ter sido considerada a pior entre as 5.507 cidades do Brasil (tomando por base os dados colhidos no Censo do IBGE de 2000 e interpretados pelo Atlas do Desenvolvimento Humano) acabou se tornando uma espécie de grito de socorro. O país - poder público e sociedade civil - ouviu e descobriu Manari. A cidade que as placas não anunciam, que a miséria não deixava existir. Um lugar onde não nascem maçãs.

*Todas as fotos são de Juliana Leitão/DP