quarta-feira, 24 de agosto de 2011

REPORTAGEM // A vida no m² mais caro do Recife


Este é um pequeno depósito construído entre as quadras públicas de tênis na praia de Boa Viagem. Um cubículo escuro que já serviu de casa para dois jovens. Duas histórias de miséria no metro quadrado mais caro do Recife. Esta é a primeira, publicada na série "As veias abertas do Recife", em dezembro de 2005.

MEU AMIGO SAMUEL
Ele mora na Avenida Boa Viagem, a alguns passos do mar, em um dos metros quadrados mais caros da cidade. Durante o dia, divide-se entre a praia, a prática do tênis e a pescaria. Observando por este ângulo, seria uma vida digna dos bon vivants. Mas Recife definitivamente não é uma cidade que deve ser interpretada por um único ângulo. Quando anoitece, a praia fica vazia e as luzes dos refletores das quadras de tênis se apagam, é então que se pode enxergar a verdadeira condição de vida de Samuel de Alencar. Um jovem de 25 anos que mora nas ruas desde os 16. Sozinho, ele se encolhe dentro de uma apertada casinha de bomba d'água localizada entre as quadras, que funciona como um depósito para bolas, baldes, vassouras e outros utensílios de manutenção das quadras. O lugar não chega a ter dois metros quadrados.

"À noite, sinto muita solidão. Mas vou fazer o quê? A vida é assim mesmo", conforma-se Samuel, acostumado a transitar entre realidades opostas. A desigualdade social o acompanha de perto, já que vive em meio a uma área nobre e construiu sua forma atual de sobrevivência dentro de um esporte tradicionalmente elitista. Ele trabalha como boleiro, uma espécie de catador de bolas durante aulas e partidas de tênis. Por meia hora de trabalho numa aula, recebe R$ 1. No final do dia, consegue juntar, em média, R$ 15, dos quais gasta R$ 10 com alimentação. "Para poder trabalhar com o tênis, é preciso estar bem alimentado, com café-da-manhã, almoço e jantar. Se não tiver isso, não consigo ficar em pé. Às vezes, quando não tenho dinheiro pra comer, as pessoas acham que estou com preguiça ou com má vontade. Mas é falta de força mesmo", conta Samuel.

O complexo de quadras onde Samuel trabalha, tem o seu convívio social e dorme é o mais claro exemplo de que riqueza e miséria não só estão lado a lado, como ocupam o mesmo lugar no espaço. Uma geração inteira de tenistas promissores surgiu ali, com garotos vindos dos bolsões de pobreza inseridos dentro da luxuosa Boa Viagem. A história se repete diariamente. Eles começam como boleiros, logo ganham uma raquete usada de presente, começam a bater bola nas horas vagas, vão aprendendo os movimentos, aperfeiçoando a técnica com os mais velhos, e - quando se percebe - já estão disputando campeonatos e trabalhando como professores (o valor de uma aula de 30 minutos é R$ 10). "Jogar tênis tira o stress e nos faz esquecer todos os problemas. Às vezes, na hora do almoço, sem dinheiro pra comer, pego a raquete, uma bola, e vou para o paredão. Lá pelo menos, alimento a mente", diz Samuel.


O COMEÇO DA HISTÓRIA
Talvez as lições do esporte acabem sendo mesmo um incentivo para o jovem continuar seu jogo diário contra o destino. Um jogo em que ele nunca venceu, nem teve chance. Em 1980, Samuel nasceu em um casa de três vãos em Olinda, que dividia com a mãe e mais sete irmãos. "A casa não tinha nada. Nem móvel, nem banheiro, nem cama. Eram apenas os colchões espalhados pelo chão", relembra. Aos 14 anos, quando estava na 5ª série, precisou abandonar a escola para vender picolé e cachorro-quente pelas ruas - numa tentativa de ajudar o orçamento da família. Seu irmão mais velho também no desespero de melhorar a vida da mãe e dos irmãos, seguiu para o mundo do crime. Acabou assassinado. "Foi o pior dia da minha vida", relembra o boleiro.

Não demorou muito para ele decidir viver sozinho na rua, vagando entre os bairros, dormindo onde dava. Entre as suas andanças, conheceu uma garota com quem passou a dividir as noites e com quem acabou tendo um filho. Um filho que nunca conheceu. "Na hora em que ela pariu, o Samu a levou e eu nunca mais tive notícia nem dela, nem do meu filho", conta Samuel, com a cabeça baixa. Essa é uma das feridas abertas do seu passado. Pior do que o arrependimento, talvez seja a sensação de impotência. "Às vezes penso em procurá-la. Mas pra quê ? O que eu posso fazer por eles ?", reflete o jovem que, ainda acredita, numa virada nesse jogo: "Estou fazendo tudo certo. Trabalhando e tentando mudar. Sei que as coisas podem melhorar um pouco".

*A primeira foto, das quadras, é de Juliana Leitão/DP. A segunda é uma reprodução "caseira" da foto de Alcione Ferreira/DP.

2 comentários:

Anônimo disse...

O relato do jovem Samuel de Alencar é o exemplo dos contrastes das grandes metrópoles. Na área mais nobre do Recife esse choque de realidades não só denuncia a falta de políticas públicas, mas faz agravar um problema que parece ser apenas de quem não teve a oportunidade a uma vida digna. Por onde anda agora o filho de Samuel? Qual futuro está reservado a ele? Um problema social que desencadeou outro, ou que apenas se propagou por outras áreas não tão nobres assim.

Maurício Penedo disse...

As cidades, como centros produtores da vida, acarretam toda essa desigualdade à tira-colo. A miséria corre atrás da fartura, com esperança de mudança. Grande matéria.