quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

CONTO // É tarde para dizer "feliz natal" ?


Era o fim do mundo. E ele já tinha estado ali algumas vezes. Mas, na manhã seguinte, algo acontecia e lá estava tudo novamente no lugar. As idéias, o rádio-relógio piscando 7h30, a cama desfeita, o fogão com panelas sujas, o copo de água metade vazio e ela, ali, ainda deitada, respirando alto. Era tudo o que ele precisava para começar o dia. Uma estranha forma de segurança. Meio vício. Meio medo. Algo que aprendeu a chamar de amor.

Mas naquele instante, ele sabia que amanhã, nada mais estaria como antes. Acreditava realmente estar ali, no fim do mundo. A folha do calendário marcava 25 de dezembro. Sentado no batente de uma calçada, assistia a ida e vinda dos homens de macacões encardidos, quase verdes, carregando caixas de papelão coloridas abarrotadas de inutilidades. Aliás, o que não seria inútil naquele momento? O rádio-relógio, os copos...os porta-retratos, a cama, os discos, o fogão. Tudo nos braços dos carregadores que, lentamente, iam abarrotando o pequeno caminhão de mudanças. Não mais do que uma caçamba onde os objetos iam se empilhotando a céu aberto. Uma espécie de árvore de natal de entulhos. Expostos para qualquer um que passasse na rua, incapazes de ouvir as histórias que eles não paravam de contar.

Somente ele as ouvia. Todas ao mesmo tempo, embaralhando qualquer esboço de raciocínio. Olhava o relógio a cada dois ou três minutos e depois, desviava o olhar para a esquina. E nada. Via apenas crianças correndo de um lado para outro, com seus brinquedos novos nas mãos e todo o tempo do mundo.

A espera durava desde a noite passada. Debruçado na janela, com o reflexo das luzes piscando e mudando a cor do seu rosto a cada instante. O olhar perdido mirava aquela esquina. Vermelho. E nada. Azul, Nenhum telefonema. Verde. Uma mensagenzinha sequer. Era a primeira noite de Natal que passava sozinho naquele apartamento de quarto e sala que, com o tempo, foi ficando cada vez maior. Talvez não tivesse exatamente sozinho. Além das caixas coloridas espalhadas pela sala, restava a tv ligada sem som. Assim passou a noite. Passou o Natal. Na janela. Esperando. Como uma criança que luta contra o sono. Tristeza e ilusão, quase sempre, se confundem. E, às vezes, os adultos também acreditam em Papai Noel.Ele pode não ser um velinho gorducho e simpático. Pode ser um sonho impossível, um sentimento perdido, uma reviravolta no destino, um tempo que não volta. E pode até ser alguém. Real. Feito de carne, osso e saudade. Assim era ela.

...
Era um apartamento de alguns poucos metros quadrados. Uns cinco passos entre a porta de entrada e o quarto. Outros cinco entre a janela da sala e a pia da cozinha. Já era manhã e não demorou para os quatro homens de macacões verdes tirarem todos os móveis dali. Ele foi até o motorista e explicou mais uma vez o endereço para onde deveria levar toda aquela tralha – que, outrora, ele costumava chamar de vida.
Então, decidiu voltar mais uma vez para o apartamento. No elevador, olhou para o espelho como se fosse a primeira vez em dezenas anos. Por um instante, não se reconheceu naquele rosto marcado, barba branca por fazer, cabelos ralos. Olhos escuros. Noites em claro. E então lembrou de quando pisou ali a primeira vez. Cabelos mais longos, olhos mais abertos, sorriso. Não estava sozinho como agora, dentro daquele quadrado. Abriu a porta do apartamento pela última vez e tomou um susto diante do imenso vazio. Nunca o apartamento foi tão grande. Nunca se sentiu tão pequeno.

As palavras se multiplicavam, se misturavam em sua cabeça. Formavam frases perfeitas. Que diziam tudo que ele sempre quis dizer. Por onde andaram essas frases durante todo este tempo? Lembrava das noites mais difíceis, onde procurava a razão da palavra razão. Onde tentava juntar dezenas de palavras para substituir a palavra desculpa. E achava que palavrões doíam mais que palavrinhas. Que o silêncio dizia mais do que a palavra silêncio.

Lá estava ele de novo, brincando de perder palavras, parado ali, no meio da sala. Imóvel. Como se fosse um móvel. Como se tivesse sido esquecido pelo caminhão de mudanças. Toda sua vida mudou. Mas ele não. Continuava o mesmo, por mais que jurasse o contrário. Sabia disso. Não admitia nem mesmo baixinho. Mas sabia. Sabia que precisaria de um caminhão de mudanças para si próprio. Um daqueles grandões. Abarrotados. Cheios daquelas qualidades que as revistas femininas enumerariam com precisão matemática. Os caras de macacões verdes trariam caixas de papelão. SINCERIDADE. Estaria escrito em uma delas. Letras vermelhas garrafais. Hidrocor pilot. SEGURANÇA. COMPANHEIRISMO. PACIÊNCIA. “Podem ir colocando uma em cima da outra”, diria.
Mudanças dignas de quem acredita em Papai Noel. Mas, já há algum tempo, ele sequer acreditava em si mesmo.

Restava a auto-ironia. E se divertia com essas bobagens que pensava. Ria sozinho. Balançava a cabeça se auto-censurando. “Como poderia pensar tanta besteira em um momento como aquele?”. Antes que ousasse responder, ouviu um barulho. Era um carro estacionando. Não, não. Era alguém andando na calçada. Ou seria o telefone tocando? Só podia ser a porta do elevador abrindo. Era ela. Sim, era ela. Não sabia exatamente como, mas tinha certeza que ela estava por perto. Chegando. Ia chegar a qualquer momento. Questão de segundos. De passos. De pressa. Depressa! Era só questão de segundos.

Correu até a janela. Olhou para a esquina. Questão de segundos. Ela apareceria. Claro que apareceria. Questão de segundos. Ele sentia. Não estava errado. Não podia estar. Questão de segundos. Questão se segundos. Questão de segundos.
Ela não apareceu. Às 7h30, silêncio. O rádio-relógio não despertou. Era o fim do mundo, mais uma vez.

...
Mas era preciso seguir em frente. Para fugir do espelho do elevador, desceu pelas escadas. Cruzou a porta do prédio, despediu-se do porteiro. Ouviu um "adeus" e um "feliz natal".
Meio tarde para um "feliz natal"?
Então subiu na caçamba do caminhão de mudanças. Sentou-se em uma das caixas coloridas e autorizou o motorista a ligar o motor. O velho veículo foi deixando a rua lentamente. Olhou para a janela do seu apartamento ficando distante. Para o seu passado ficando distante. E quando todos os seus pensamentos também já estavam distante, sequer ouviu um grito vindo da rua.
Olha o papai noel! - berrou um garotinho de 6 ou 7 anos com uma bola ainda branquinha embaixo dos braços. O menino deixou os pais na calçada e saiu correndo atrás do caminhão, acenando, e repetindo o grito.
Quanto mais o garotinho corria, mais o caminhão se distanciava.
E aquele homem velho, cansado, de cabelos brancos ralos, barba de semanas por fazer, olhar perdido, coração partido, sentado numa pilha de caixas de papelão coloridas nunca mais sairia da cabeça do menino.
Ele voltou andando lentamente para os pais que riam na calçada. "Vocês viram? Era o papai noel voltando pra casa! Eu sabia que um dia encontraria com ele".
Jamais poderia saber que aquele "papai noel" nunca voltaria pra casa.
Jamais precisaria saber.
Pelos olhos das crianças, ficção vira realidade. Realidade vira ficção. Sonhos se realizam. Mágicas nunca são truques. Mas truques sempre são mágicas. Amores duram mais. Famílias mais ainda. E todas as histórias terminam com o final feliz.

Era 8h30 quando o telefone tocou no apartamento vazio.

Era tarde demais para desejar "feliz natal"?

O final dessa história depende dos olhos de quem a leu.


(de Fred Figueira, publicado na série "Contos de Natal", do Diario de Pernambuco, dia 25 de dezembro)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CAPA - Um ano em 12 páginas

Entre os dias 13 de janeiro e 26 de novembro - justamente o quanto durou a temporada 2011 para o futebol pernambucano - o Diario publicou 37 capas com manchetes direcionadas para Santa Cruz, Náutico e Sport.

Apenas uma delas foi dedicada aos três clubes. E, não por coincidência, foi a capa de "abertura" do Campeonato Estadual. Para montar a primeira edição esportiva do ano, era preciso captar a essência do Pernambucano 2011. Seria uma QUESTÃO DE HONRA para o Sport conquistar o hexa, para o Náutico defendê-lo e para o Santa Cruz mostrar que não estava condenado a ser um coadjuvante dentro do próprio estado.

A retrospectiva comprova que o Santa Cruz foi o time com mais espaço editorial na 1ª página do Diario em 2011. Apareceu em 17 capas, sendo 12 delas inteiramente dedicadas ao clube e outras cinco dividindo o espaço com um dos rivais.

A capa que resume a mudança de foco na cobertura jornalística foi a do dia 28 de janeiro. Depois de seis vitórias em seis jogos, estava claro que havia algo de diferente no clube tricolor. Nos últimos anos, era uma imagem comum nas páginas dos jornais as fotos de torcedores do Santa Cruz chorando, abatidos ou revoltados na arquibancada do Arruda. Mas esta cena não se repetia em 2011. Pelo contrário.

Distribuição das capas:

TOTAL:
37 capas
Edição do dia seguinte à primeira partida da final do Pernambucano: Sport 0x2 Santa Cruz.

Santa Cruz - 12 (+ 5 divididas com um rival)
Náutico - 6 (+ 8 divididas)
Sport - 2 (+ 9 divididas)


NO ESTADUAL:
23 capas
Esta edição foi depois do primeiro clássico do ano, mas serviria para resumir a temporada do Náutico. O estádio dos Aflitos foi uma das principais armas do clube para garantir o retorno à Série A.

Santa Cruz - 7
Náutico - 4
Sport - 0


Divididas: 8 (3 para Santa/Sport; 2 para Santa/Náutico; 2 para Náutico/Sport)

A obsessão do hexa para Sport e Náutico era o foco natural do PE2011. Por isso, as partidas das semifinais tiveram um tratamento de decisão de título nas páginas do Diario. O detalhe é que a classificação rubro-negra acabou sendo derrubada da manchete quase na madrugada, com a morte de Osama bin Laden. Assim, escolhi esta capa para representar os seis Clássicos dos Clássicos da temporada.

Esta capa, na minha opinião, é uma das melhores do ano - sobretudo pelas excelentes fotos de Helder Tavares. O detalhe é que ela foi publicada um dia antes da final (no sábado) e acabou ficando superior em praticamente todos os aspectos em relação a página que saiu no domingo da decisão. No final da noite de sexta-feira, na redação, ainda pensamos em fazer a troca...tarde demais. Entre a ideia original e a realização nem sempre tudo funciona. Foi mais ou menos o que aconteceu com a capa da grande final do Estadual, que coloco logo abaixo:

Caso Eduardo Ramos - 2


O fato mais lamentável do futebol estadual em 2011 ganhou duas capas do Diario. A primeira ainda com a denúncia quente do presidente do Náutico, Berillo Júnior, revelando ter provas de uma tentativa de suborno do Sport envolvendo o meia Eduardo Ramos. No dia seguinte, a "bomba" começou a perder força e o foco foi rapidamente invertido. No fim da temporada, o dirigente alvirrubro acabou sendo punido pelo episódio.

SÉRIE D
5 capas
A explicação para este "domínio" tricolor tem dois motivos muito claros. O primeiro, lógico, foi a campanha surpreendente e o título estadual. É absolutamente natural que o campeão do ano tenha mais espaço do que os seus rivais. A segunda razão passa diretamente pelo dia dos jogos da Série D e pela logística dos jornais. Como só o Santa Cruz jogou aos domingos a partir de maio, era inevitável que se tornasse um dos assuntos principais da segunda-feira - dia em que tradicionalmente o jornalismo esportivo ganha mais espaço. Em contrapartida, o fato de Náutico e Sport jogarem aos sábados praticamente inviabiliza uma manchete no dia seguinte. A 2ª edição do domingo, na maioria dos casos, é exclusiva para assinantes. Por isso não é necessário fazer uma mudança radical na concepção da capa. Apenas na última rodada da Série B, a indefinição criada em torno do acesso do Sport praticamente obrigava uma 2ª edição do jornal de domingo não apenas para assinantes, mas também para ser comercializada nas ruas.

SÉRIE B
8 capas
Os jogadores comemoraram, a torcida comemorou e até o sempre contido técnico Waldemar Lemos cedeu a festa que se espalhou pelo estádio dos Aflitos pelo praticamente certo acesso do Náutico à Série A do Brasileiro depois da vitória sobre o Barueri. Mas ainda faltavam dois pontos para os alvirrubros garantirem de uma vez por todas a vaga. Na matemática, a chance do clube não subir era inferior a 1%. A foto de Waldemar sendo carregado pelos jogadores (da autoria de Ricardo Fernandes)já era uma imagem forte o suficiente para deixar claro que o Náutico havia subido. Mas do título de um post no blog de Cassio Zirpoli ("Aos matemáticos, o Náutico subiu") acabou saindo a definição da manchete.

Náutico - 2
Sport - 2
Divididos: 4


A primeira capa dedicada ao Sport no ano foi publicada no dia 26 de novembro, data cabalística da última rodada da Série B. Só este fato já representa o que foi o ano rubro-negro. Quase nada que merecesse uma manchete. E a edição do dia do decisivo jogo contra o Vila Nova acabou resumindo toda a temporada. As derrotas, as provocações, a revolta da torcida...e também o renascimento no apagar das luzes, com as vitórias em sequência e a incrível cena da invasão no Aeroporto Internacional dos Guararapes, três dias antes. Minha primeira ideia era "Quem vai rir por último?". Acabou não sendo muito bem recebida. A 2ª opção, mais direta e definitiva, acabou sendo a escolhida. Um ano em 90 minutos. Assim foi 2011 para o Sport.

***Não sei se alguém teve paciência para chegar até aqui, já que este post extrapolou todos os padrões atuais. Tudo o que ultrapassa 140 caracteres parece exagero. Mas, acreditem, tentei realmente resumir ao máximo o ano. Como este é um blog pessoal, optei por publicar as capas em que trabalhei direta ou, pelo menos, indiretamente (com um pitaco ali ou aqui) - já que, nos meus plantões aos domingos, não assumo a função de editor da 1ª página e fico com o caderno Superesportes. E - como já escrevi em postagens anteriores sobre as capas do Diario - a edição final é sempre resultado de um processo que passa por muita gente. Uma espécie de filtro de visões e opiniões diferentes que, no final das contas, vão se completando.

No calendário do futebol pernambucano, 2011 já terminou. Feliz ano novo, então.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

CAPA - Continuando...

A força das redes sociais formaram uma onda espontânea de repercussão - derrubando várias fronteiras (não apenas geográficas) - em torno de duas capas do Diario neste ano. A do massacre do Realengo e a da morte de Steve Jobs.


As duas inegavelmente nasceram de um instante de inspiração. Seja a manchete "12 mortos, 190 milhões de feridos", que surgiu no início da tarde, ou o desenho simples de Jarbas Domingos, esboçado quando já era madrugada.

Mas a inspiração, os insights, as boas e raras ideias, na verdade, não surgem por acaso. É fundamental ter espaço para que isso aconteça. O que só é possível quando existe um processo de trabalho consistente. Uma base conceitual. Poderíamos até tentar resumir como "liberdade de criação". Mas nem de perto resumiria.

A liberdade acabaria sendo dispersa se não houvesse um conceito e várias pessoas trabalhando junto em torno deste conceito que une jornalismo, fotografia e arte.Essa união de ferramentas, de visões e de interpretações de um fato forma um filtro natural.E a inspiração só se torna algo concreto e funcional ao passar por esse filtro.

Enfim...esta postagem é para (tentar) mostrar um pouco desta base, com mais três capas que passaram por esse filtro:


Esta foi uma capa quádrupla publicada no último dia de 2010. As quatro páginas formavam uma retrospectiva da década.

A reportagem sobre a verticalização do Recife - uma das 20 cidades com prédios mais altos do mundo - pedia uma capa que mostrasse isso. Daí a aposta de quebrar o padrão e trazer uma manchete também vertical.

E no dia em que a foto já dizia tudo. A opção por ela dizer tudo. Numa capa sem manchete.