sexta-feira, 26 de agosto de 2011

REPORTAGEM // Todas as lutas de Tony


"Shane D'Souza estava praticamente irreconhecível. Os guardas o arrastaram pelo chão da cela e depositaram seu corpo quebrado em uma maca suja. Ele fora espancado, golpeado, cortado, estuprado e estragado de todas as formas possíveis. Poças de sangue formavam grandes manchas púrpuras no concreto frio. Quando o levaram para a ala do hospital, deixou para trás uma trilha sinuosa de mutilação no corredor escuro. Todos sabíamos quem era o culpado pelo ataque àquele jovem. Ninguém disse uma palavra. As autoridades não se importavam. Não haveria inquérito ou sequer punição para o agressor. Nada de justiça para o meu amigo. Era um dia como outro na prisão. Éramos assassinos, traficantes, gângsters, pedófilos, ladrões, estupradores, terroristas e trapaceiros: um saco repleto com a mistura da depravação humana; os piores dos piores"

...Numa mesa de centro, entre os sofás simples do saguão de entrada do antigo Hotel Plaza Recife, na Rua da Aurora, estão espalhados os dois principais jornais do estado. Mas a descrição do parágrafo acima não está em nenhuma reportagem daquela segunda-feira. Não era uma notícia. Não aconteceu em nenhum dos presídios pernambucanos. Até poderia - já que agressões e mortes com tais requintes de violência extrema também fazem parte do cotidiano de algumas unidades penais do estado. Mas não era o caso. A cena da morte do jovem Shane faz parte de uma realidade distante. Distância no sentido de tempo e espaço. Uma história presa em um passado que, simplesmente, não passou. E que, ao menos para um homem, precisa ser contada e repetida. Um homem que tenta apenas ser comum. Que apenas tenta.

Um exemplar de "Domando o Tigre"está sobre uma mesa atrás da recepção do hotel. O marcador de livros repousa na página 17. Exatamente onde começaria o segundo capítulo. Apesar da calmaria no saguão, o recepcionista Roberto não pode passar muito tempo entretido com a biografia que ganhara um dia antes. "Ele foi tricampeão mundial de kung-fu.Não é pouco coisa. Ele é capaz de mutilar uma pessoa em poucos minutos", conta Roberto. Instantes depois, o recepcionista repete a história - ou o pouco que leu nas primeiras páginas - para outro funcionário do Plaza. Repete a história da vida de Tony Anthony.

A descrição que abriu esta reportagem é justamente o primeiro parágrafo do livro que Roberto está lendo. "Domando o Tigre" é uma biografia de Tony Anthony. O relato é de dentro da prisão central de Nicósia, no Chipre. Tony foi preso em 1990. Um ano antes, tornava-se tricampeão mundial de kung-fu. Mas já não se dedicava exclusivamente a carreira esportiva. Também trabalhava como guarda-costas no alto escalão do sistema de proteção particular na Inglaterra. Assim tornou-se chefe de segurança do embaixador da Arábia Saudita no Reino Unido, Itália e Chipre, Amin Fahed. A estreita ligação de Amin com as redes internacionais de jogo e prostituição acabou colocando Tony em um caminho inevitável de espancamentos, assassinatos e assaltos.

O 'homem com sede desangue' bebe chá

Era uma tarde de segunda-feira movimentada na Rua da Aurora. Passava das 16h30 quando uma kombi branca estacionou em frente ao hotel. Dentro dela, havia um ventilador e algumas caixas com cartazes e livros. Do veículo, desce um homem branco, bochechas rosadas e suadas, olhar amigável, expressão cansada, puxando duas pequenas malas pretas com rodinhas. Uma imagem nada assustadora. Era realmente o que pode se chamar de um homem comum. Difícil imaginá-lo "mutilando" alguém em poucos minutos. Mas a pequena foto numa das orelhas do livro não deixava dúvidas: era mesmo Tony Anthony que acabava de retornar ao Plaza, onde estava hospedado desde o final de semana. Já no sagüão, ele olhou para o relógio com cara de preocupação. Perguntou se a entrevista poderia ser feita no restaurante. Disse que estava cansado e precisava beber algo. Na contracapa do seu livro, um texto com pretensões épicas e tom inevitável de sensacionalismo, define Anthony como um homem com sede de sangue. Mas ao chegar à mesa - como um bom inglês - ele pediu um chá. Escolheu o de erva doce.

E assim, fantasmas viram personagens

Mas afinal o que o ex-tricampeão mundial de kung-fu, o violento guarda-costas e o criminoso internacional estaria fazendo em um hotel simples do centro do Recife? A verdade é que essas três definições já não se aplicam à Tony Anthony. São apenas personagens da sua vida. Ou, pelo menos, dos primeiros capítulos desta. Até aquele momento, praticamente tudo o que se podia saber sobre o entrevistado estava escrito na tal contra-capa do livro que lançou no ano passado. Ou na já citada descrição da morte do seu melhor amigo na prisão. Morte que ele jurou vingar com brutalidade semelhance. Essa vingança é o ponto de partida do livro, mas na verdade é marco que divide a vida de Tony Anthony em duas partes. A sua história em duas vidas. A primeira narra a construção de homem violento. Enquanto bebe o seu chá, Tony conta os fatos com uma certa frieza. De forma metódica. Sem demonstrar emoção. Como se não passasse de uma ficção. Como se realmente o menino aterrorizado e espancado pelo avô ou o jovem perdido e violento fossem mesmo meros personagens. Talvez isso até se explique pelo cansaço de repetir pela enésima vez essas passagens da sua vida. Mas era justamente essa a razão que o trazia até ali. Até aqui. O tom muda um pouco quando ele relata a morte da namorada em um acidente de carro na Inglaterra. "A partir desse dia, me tornei ainda mais violento. Passei a exagerar nos espancamentos. Minha reação era além dos limites. Quebrava as pessoas em várias partes. Matei algumas delas sem qualquer necessidade", confessa, com a naturalidade de quem convive com um passado que preferiu não esquecer.


De repente, o mal vira bem.

A vingança contra o assassino de Shane, no entanto, não aconteceu. Antes disso, o prisioneiro conheceu um missionário da Irlanda do Norte, Michael Wright, que começou a escrever cartas para Tony. "Eu me aborrecia quando via os prisioneiros tornando-se religiosos. Para mim, aquilo era um sinal de fraqueza. Só aceitei encontrar com Michael pela primeira vez, porque os outros presos diziam que essas visitas aconteciam em um local onde se vendia coca-colas e sabia que ele acabaria pagando uma pra mim", expõe o ex-lutador, que teve formação budista. Sim, a partir desse ponto, a história de Anthony se mistura com a de milhares de outros prisioneiros que acabam sendo "evangelizados" durante o cumprimento da pena. Claro que Marcos Wright não mandava cartas apenas para Tony. "Fiquei me perguntando porque alguém se preocuparia comigo se até mesmo os meus amigos e a minha família já haviam me abandonado", conta Anthony, deixando claro a fragilidade em que os presos se encontram na hora em que recebem cartas como as de Wright ou visitas de grupos religiosos. A partir daqui, até o tom de voz dele muda. A emoção aparece. Talvez, tão metódica quanto a frieza dos minutos anteriores. Ele está livre. Desde que deixou a prisão da Nicósia, Tony abandonou completamente o kung-fu. Hoje, usa o velho clichê religioso do "Jesus ensina a dar a outra face". Sim, Tony é mais um prisioneiro que virou missionário. Mais um "homem mau" que virou "homem bom". Ele sabe que repetir sua história não trará o perdão incondicional da parte da sociedade que torce o nariz para sua religião. Pregadores como ele aprenderam a conviver com a devoção de alguns e a ironia de outros. Sua história e sua redenção são como a sua fé. Ele acredita. Mas você não precisa acreditar.

O final da história que não termina

Tony fundou a Avanti Ministries Limited e trabalha com várias igrejas evangélicas da Inglaterra. Publicou o livro "Domando o tigre" em 2004 e já viajou 53 países com suas duas malas pretas. Delas, sempre tira uma bíblia. Sua função é convencer. Converter. O Brasil acaba de entrar nessa lista. Pernambuco foi o único destino dessa primeira viagem. Em uma semana, ele percorreu todas as unidades prisionais do Grande Recife. "Por mais estranho que pareça, me sinto à vontade nesses lugares. Não preciso me esforçar para mostrar que eles são pecadores. Não é só dentro de uma prisão que existem pessoas sem liberdade. Aqui fora, muitos também estão presos. Estão presos ao dinheiro, ao sexo, às drogas e a violência", fala o missionário, olhando para a Rua da Aurora. Ele encontrou no Recife a dualidade entre violência e fé. A mesma que conduziu sua vida. Uma estranha ligação. "Sei que aqui embaixo existem pessoas que estão armadas, que podem matar alguém mais tarde e que ao mesmo tempo trazem o nome de Jesus em todos os cantos. Em adesivos, em camises, nos carros# existe um vazio muito grande por trás disso".

O inglês foi trazido ao Recife pelo Exército da Salvação, em parceira com um grupo formado por vários segmentos de igrejas evangélicas. Cumpriu sua função. Repetiu sua história o quanto pôde. Nesse exato momento ele conseguiu chegar até você. Independentemente de do seu declarado objetivo de evangelização, o ex-lutador é um dos poucos que tem coragem de contar abertamente a sua história e assim, inverter o foco comum das discussões sobre a violência. Ele não é a vítima. E ainda assim, é um exemplo claro de que a violência também pode destruir a vida de quem está do outro lado. Talvez também seja um exemplo de que, de algum modo, as pessoas podem sim mudar. "Hoje eu sou casado, tenho dois filhos e uma família perfeita. Mas não mereço isso", diz, com um tom amargo de quem fala em "libertação" mas ainda está preso ao próprio passado.


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

REPORTAGEM // No m² mais caro do Recife (parte 2)


Esta foto é do último dia 2 de agosto. A paisagem da varanda de um dos prédios de luxo da Avenida Boa Viagem - onde o metro quadrado, atualmente, está em torno de R$ 9 mil. Observando a imagem com atenção vemos que o pequeno depósito que guardava velhas bolas de tênis, raquetes quebradas, equipamentos enferrujados e vidas sem rumo não existe mais. Depois das histórias dos seus moradores terem sido contadas na série "As veias abertas do Recife", ele foi destruído. O seu último morador foi Evaldo Cavalcanti. Ele morava no interior de Goiás e viu imagens da praia de Boa Viagem pela televisão. No texto abaixo, está tudo o que a televisão não mostrou.


A CIDADE DO PESADELO

"Eu andei sem destino, perdi a razão / na estrada da vida, fui na contramão / mergulhei de cabeça no abismo sem fim /loucura e tristeza eram parte de mim / a ponte entre a vida e a morte, eu cruzei / e do outro lado, eu vi os meus pedaços no chão". Esse é um trecho de uma canção evangélica que Evaldo Cavalcanti não lembra o nome. Mas não esquece seus versos. "Essa música é a história da minha vida", diz - em tom de melancolia e tristeza -, o jovem de 25 anos. Sentado na sombra de uma árvore na praia de Boa Viagem, Evaldo cantou e contou um pouco da sua história e, sobretudo, do pior ano da sua vida: 2006.

Mas esta história começa há exatamente um ano. Longe daqui...

Um imenso mar azul. Os luxuosos edifícios. As pessoas se divertindo na praia, dançando no carnaval, tomando água de coco tranqüilas no calçadão. O jovem Evaldo Cavalcanti, aos 24 anos, ficou fascinado ao ver Recife pela primeira vez. Ele estava há mais de dois mil quilômetros. Sentado em frente a uma televisão na cidadezinha de Aragarças,no interior de Goiás. Os dias passaram e aquela grande e bela cidade do comercial da TV não saia mais da cabeça e muito menos dos sonhos de Evaldo.

O sonho de Evaldo era o pesadelo de Samuel de Alencar - um jovem da mesma idade, mas que desde os 16 anos vivia pelas ruas do Recife. Enquanto Evaldo via o mar pela TV, Samuel morava a poucos metros dele. Quanto aos edifícios luxuosos da beira-mar, eram algo igualmente distante e irreal para os dois. O garoto pernambucano morava dentro de um pequeno depósito com menos de dois metros quadrados entre as quadras de tênis da orla de Boa Viagem. Dormia e trocava de roupas entre bolas de tênis, utensílios de limpeza e pedaços de papelão.

Um ano passou. E o jovem serralheiro goiano juntou suas economias e, com R$ 650,00, tomou coragem para se aventurar rumo ao desconhecido. Deixou para trás pai, mãe, dois filhos e uma vida simples, mas estável. Tudo para realizar o sonho de conhecer o mar. "Quando o ônibus chegou, eu pedi para descer e peguei a primeira Van para apraia de Boa Viagem. Foi uma alegria", relembra Evaldo. À noite, para não gastar dinheiro, dormiu na rua. Era para ter sido só por uma noite.

"Meu sonho virou pesadelo. Nesses cinco meses que vivi no Recife, fui me tornando um morador de rua. O dinheiro e as roupas acabaram. Não consegui emprego e nunca vi uma violência como a daqui", conta Evaldo, que presenciou o assassinato do universitário Rafael Dubeux,no dia 19 de novembro, numa das quadras de tênis da avenida Boa Viagem.

Foi justamente no cenário que se tornou o símbolo da desigualdade social intríseca do Recife que o goiano encontrou abrigo. "Conheci um professor de tênis e ele me disse para eu vir pra cá, onde teria um lugar para dormir e conseguiria ganhar dinheiro para comer", conta Evaldo, agora conhecido apenas por "Goiás".

Quando chegou às quadras de tênis, o pequeno depósito estava vazio. Hoje não está mais. "Goiás" mora lá há cinco meses, enquanto espera uma nova chance da vida. "Um emprego ou um violão" - sonha. Para seguir na sua "estrada da vida..."

O EPÍLOGO
"Goiás" morou na casinha das quadras de tênis por mais de um ano. Porém, neste caso, a aproximação com o esporte não foi suficiente para dar um novo rumo à sua vida. A degradação humana e moral iniciada com a viagem entre Aragarças e o Recife condenou Evaldo. O choque de realidades de Boa Viagem o transformou em traficante de drogas. Primeiro atuava como "avião", repassando pequenas quantidades entre uma partida e outra de tênis, quando trabalhava como boleiro. Tempos depois, ao voltar lá, ouvi apenas os relatos: "Ele começou a ganhar dinheiro. Saiu do depósito, alugou um apartamento na favela e até com carro apareceu por aqui. Mas acabou se dando mal, foi preso e levado para o Aníbal Bruno".

Uma história que se repete diariamente. Mudam os nomes e os rostos. Quase nunca o final.

Nunca mais tive notícias de "Goiás".


* a foto acima é de Nando Chiappetta/DP

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

REPORTAGEM // A vida no m² mais caro do Recife


Este é um pequeno depósito construído entre as quadras públicas de tênis na praia de Boa Viagem. Um cubículo escuro que já serviu de casa para dois jovens. Duas histórias de miséria no metro quadrado mais caro do Recife. Esta é a primeira, publicada na série "As veias abertas do Recife", em dezembro de 2005.

MEU AMIGO SAMUEL
Ele mora na Avenida Boa Viagem, a alguns passos do mar, em um dos metros quadrados mais caros da cidade. Durante o dia, divide-se entre a praia, a prática do tênis e a pescaria. Observando por este ângulo, seria uma vida digna dos bon vivants. Mas Recife definitivamente não é uma cidade que deve ser interpretada por um único ângulo. Quando anoitece, a praia fica vazia e as luzes dos refletores das quadras de tênis se apagam, é então que se pode enxergar a verdadeira condição de vida de Samuel de Alencar. Um jovem de 25 anos que mora nas ruas desde os 16. Sozinho, ele se encolhe dentro de uma apertada casinha de bomba d'água localizada entre as quadras, que funciona como um depósito para bolas, baldes, vassouras e outros utensílios de manutenção das quadras. O lugar não chega a ter dois metros quadrados.

"À noite, sinto muita solidão. Mas vou fazer o quê? A vida é assim mesmo", conforma-se Samuel, acostumado a transitar entre realidades opostas. A desigualdade social o acompanha de perto, já que vive em meio a uma área nobre e construiu sua forma atual de sobrevivência dentro de um esporte tradicionalmente elitista. Ele trabalha como boleiro, uma espécie de catador de bolas durante aulas e partidas de tênis. Por meia hora de trabalho numa aula, recebe R$ 1. No final do dia, consegue juntar, em média, R$ 15, dos quais gasta R$ 10 com alimentação. "Para poder trabalhar com o tênis, é preciso estar bem alimentado, com café-da-manhã, almoço e jantar. Se não tiver isso, não consigo ficar em pé. Às vezes, quando não tenho dinheiro pra comer, as pessoas acham que estou com preguiça ou com má vontade. Mas é falta de força mesmo", conta Samuel.

O complexo de quadras onde Samuel trabalha, tem o seu convívio social e dorme é o mais claro exemplo de que riqueza e miséria não só estão lado a lado, como ocupam o mesmo lugar no espaço. Uma geração inteira de tenistas promissores surgiu ali, com garotos vindos dos bolsões de pobreza inseridos dentro da luxuosa Boa Viagem. A história se repete diariamente. Eles começam como boleiros, logo ganham uma raquete usada de presente, começam a bater bola nas horas vagas, vão aprendendo os movimentos, aperfeiçoando a técnica com os mais velhos, e - quando se percebe - já estão disputando campeonatos e trabalhando como professores (o valor de uma aula de 30 minutos é R$ 10). "Jogar tênis tira o stress e nos faz esquecer todos os problemas. Às vezes, na hora do almoço, sem dinheiro pra comer, pego a raquete, uma bola, e vou para o paredão. Lá pelo menos, alimento a mente", diz Samuel.


O COMEÇO DA HISTÓRIA
Talvez as lições do esporte acabem sendo mesmo um incentivo para o jovem continuar seu jogo diário contra o destino. Um jogo em que ele nunca venceu, nem teve chance. Em 1980, Samuel nasceu em um casa de três vãos em Olinda, que dividia com a mãe e mais sete irmãos. "A casa não tinha nada. Nem móvel, nem banheiro, nem cama. Eram apenas os colchões espalhados pelo chão", relembra. Aos 14 anos, quando estava na 5ª série, precisou abandonar a escola para vender picolé e cachorro-quente pelas ruas - numa tentativa de ajudar o orçamento da família. Seu irmão mais velho também no desespero de melhorar a vida da mãe e dos irmãos, seguiu para o mundo do crime. Acabou assassinado. "Foi o pior dia da minha vida", relembra o boleiro.

Não demorou muito para ele decidir viver sozinho na rua, vagando entre os bairros, dormindo onde dava. Entre as suas andanças, conheceu uma garota com quem passou a dividir as noites e com quem acabou tendo um filho. Um filho que nunca conheceu. "Na hora em que ela pariu, o Samu a levou e eu nunca mais tive notícia nem dela, nem do meu filho", conta Samuel, com a cabeça baixa. Essa é uma das feridas abertas do seu passado. Pior do que o arrependimento, talvez seja a sensação de impotência. "Às vezes penso em procurá-la. Mas pra quê ? O que eu posso fazer por eles ?", reflete o jovem que, ainda acredita, numa virada nesse jogo: "Estou fazendo tudo certo. Trabalhando e tentando mudar. Sei que as coisas podem melhorar um pouco".

*A primeira foto, das quadras, é de Juliana Leitão/DP. A segunda é uma reprodução "caseira" da foto de Alcione Ferreira/DP.

ANÁLISE // Rita, o reencontro

Em certas e raras situações, o jornalismo proporciona o reencontro entre o repórter e o personagem. Um dia, um mês, um ano depois... para mim estabelecer esta relação sempre foi difícil. É preciso se aproximar, mas também é fundamental manter distância. Como fazer isso? Simplesmente não há uma resposta pronta. Resta tentar entender/sentir o momento e não forçar a barra. Esta linha é sempre tênue.

"Dessa vez, não vou falar nada. Minha foto saiu em todos os jornais e eu não ganhei nada com isso. Ninguém veio me ajudar. Meus filhos não me procuraram. Não mudou nada na minha vida. Continuo aqui".

Foi assim que Rita Gonçalves nos recebeu (estava mais uma vez ao lado da fotógrafa Alcione Ferreira)um ano depois da publicação do especial "As veias abertas do Recife". Menos aberta, mais amarga. Com razão.

Muitas vezes, o entrevistado cria expectativas exageradas em relação a uma matéria de jornal, uma reportagem na tv... e, quase sempre, não está preparado para uma reação negativa. Acontece.

Rita imaginava que, ao ler o texto de 2005, os seus filhos poderiam mudar de postura, resgatá-la daquele cenário degradante e ainda mais assustador um inverno depois. Aconteceu o oposto. "Disseram que eu fui ridícula em aparecer no jornal", desabafou a ex-prostituta(em uma frase que, não lembro exatamente o motivo, optei por não incluir na segunda reportagem).

Talvez resumisse tudo. O tempo que, no fundo, não passou entre 2005 e 2006.

Sem o desabafo direto, o mesmo sentimento foi contado com outras palavras. Abaixo, coloco alguns trechos:


UM ANO DEPOIS...

No momento de fragilidade em que foi fotografada chorando, ela falava dos filhos que a deixaram pra trás. Do abandono. Da extrema pobreza. Da desilusão. Dos sonhos que não passaram de sonhos. Da vida que sequer deveria ser chamada de vida. Do passado...que ainda não passou.
(...)
Exatamente um ano depois, reencontramos a mesma Rita em sua casa - entre as paredes úmidas sem pintura e os velhos móveis amontoados se equilibrando com cada vez mais dificuldade, por trás dos panos e remendos encardidos que encobrem improvisos e embaixo da lona plástica que protege das goteiras e dos pedaços de telhado que, "sabe Deus como", resistiu a mais um inverno.
(...)
Estamos no Bairro do Recife, a poucos metros do Paço Alfândega e do Porto Digital. No segundo andar de um prédio que venceu o tempo. Ou melhor, foi derrotado por ele. Abandonado. Para quem olha de fora, é difícil acreditar que alguém vive ali. Para quem olhar por dentro, é impossível.
(...)
Lá dentro, a estranha impressão de que o tempo simplesmente não passou. Numa das paredes, resiste um calendário de 2005. No varal que cruza o pequeno cômodo em que Rita vive, a mesma camisa que ela usava ano passado. Nos olhos dela, a mesma desconfiança que logo se abre, se rende, se umedece - vira tristeza.
(...)
Sete pessoas continuam vivendo nos cubículos do segundo andar, cujo aluguel diminuiu de R$ 200,00 para R$ 150,00. Agora, nem a proprietária vai até lá buscar o dinheiro, que passou a ser depositado por Rita. Embaixo, uma velha placa de "vende-se". "Faz mil anos que essa placa está aí. As pessoas vêm aqui, olham e não voltam", conta a moradora que ainda espera pela sua vez de ir embora dali e nunca mais voltar.

"Espero que seja antes do próximo inverno" - disse Rita. Pela segunda vez

terça-feira, 23 de agosto de 2011

REPORTAGEM // Rita


"Isso é a vida", lamentou Rita Gonçalves, depois de tomar um pouco de fôlego, encher o peito de ar, procurar forças sabe-se lá onde e tentar conter as lágrimas que já haviam deixado seus olhos pesados, vermelhos, e que já começavam a lhe tomar a voz, a firmeza das palavras e a certeza se isso realmente pode ser chamado de vida. Até aquele instante, Rita mostrava-se uma mulher forte, apesar de tudo. E, ao não resistir às lágrimas, é que pôde se ver - na verdade - o quanto aquela mulher realmente era forte.

O motivo para as lágrimas dela é comum a qualquer mãe: saudade dos filhos. Rita teve três. Dois meninos e uma menina. Sem a menor condição de criá-los, ela permitiu que os pais deles os levassem embora. O único que ela continua sendo responsável é justamente o mais velho, que tem 29 anos e é portador de deficiência mental. "Minha sobrinha toma conta dele. E eu ajudo com R$ 80,00 para pagar o aluguel da casa onde eles vivem, no Coque", conta Rita. Os outros dois acabaram crescendo longe dela, construíramnovas famílias e hoje praticamente ignoram a existência da mãe. "Eu até ligo, mas eles não me atendem", conta, chorando, e completa: "eu sei que o único motivo pra isso é porque eu sou muito pobre".

A dor ela tenta superar com um conformismo social que a realidade lhe impôs como lição fundamental de sobrevivência : "Eles vivem muito bem. Eu nunca poderia dar aquilo pra eles. Então, que seja. Eu rezo por eles todas as noites e agradeço por estarem bem e podendo ter uma vida melhor do que a que eu tive", disse Rita, abrindo um elo com o seu próprio passado, que a fez encontrar e entender o início da sua gradual decadência humana e social. O início do seu fim. Do fim dos seus sonhos. Da suas chances. Do seu futuro. Da Rita que, um dia, a Rita queria ser.

E é nesse retorno ao passado que a história dela resume a essência da profunda desigualdade social do Recife. Rita Gonçalves nasceu em 1947 e cresceu no Córrego do Euclides. A mãe era empregada doméstica. O pai, ela nunca conheceu. Sem nunca ter ido à escola, Rita começou a trabalhar aos 11 anos, para ajudar na cada vez mais desesperadora situação financeira da sua mãe, agora, com três filhos pra criar. O primeiro emprego foi como doméstica de uma família em Casa Forte. Tudo o que ganhava, entregava a sua mãe. "Eu era uma boa filha, sempre fiz tudo para ajudar a minha mãe", desabafa Rita, numa clara relação à sua condição atual, de abandono.

Então, aos 16 anos, Rita cedeu às tentações, às promessas de dinheiro fácil no próspero Bairro do Recife dos anos 60. Tornou-se prostituta. "Não existe nada pior. Nada mais humilhante. Jamais eu deveria ter caído aqui nesse bairro. Nessa vida. Perdi a minha mocidade toda. Nada fiz. Nada tenho", conclui a garota que envelheceu nas ruas do Velho Recife, que viu a decadência do bairro de perto - ou melhor, na própria pele.

Há 42 anos no Bairro do Recife e há 25 dentro de um apertado cubículo de seis metros quadrados, onde ela encaixa uma cama de casal, um armário penso, um ventilador, uma pequena e velha tv, um refrigerador, um fogão, uma mesa e algumas imagens e pôsters de santos católicos. O lugar é escuro, extremamente úmido e mofado. Uma lona armada nas paredes, protege dos pedaços que caem do teto e das goteiras, de qualquer dia de chuva. Também não há água encanada e existe apenas um banheiro para os sete quartos do andar.

Não há fotos, nem dela, nem de ninguém. Não há espelho. Não há relógio - assim, é como se não houvesse passado, presente ou futuro.

RAIO X DO BAIRRO DO RECIFE

925 pessoas

31% de analfabetismo entre adultos acima dos 25 anos

0,3% com mais de 11 anos de estudo

R$ 156,88 - renda per capita do responsável pelo domícilios

8% com água encanada

97.7% com coleta de lixo

0,05 banheiros por pessoa

domingo, 21 de agosto de 2011

Era uma vez o jornalismo...


"Era uma vez o jornalismo..." Uma frase para ser lida duas vezes. Nela, os sentidos antagônicos de "início" e "fim" se completam. A partir de 2005, alguns jornais começavam a transição - que ainda está em curso seis anos depois - entre as notícias do ontem (factuais e cada vez mais envelhecidas com a popularização da internet e das tecnologiais móveis)e as narrativas que passavam a desviar o foco dos fatos para as pessoas. Os personagens e as grandes histórias ganharam espaço nas páginas dos jornais. A velha e quase matemática fórmula do lide (quem diria?) foi deixada de lado pela essência do que se chegou a rotular como jornalismo literário. O jornalismo do "era uma vez...".

Talvez (pelo menos, para mim) o marco zero deste processo no estado tenha sido o especial "As veias abertas do Recife", publicado pelo Diario de Pernambuco entre os dias 11 e 18 de dezembro de 2005 e vencedor do Grande Prêmio Caixa de Jornalismo em 2006. Uma pesquisa do PNAD que detalhava as condições sociais da cidade ganhou vida em textos escritos por André Duarte, Paulo Goethe, Sérgio Miguel Buarque e por mim. Números viraram histórias. Estatísticas se transformaram em pessoas.

Este é o link para ler o primeiro dia do especial: http://www.pernambuco.com/diario/2005/12/11/especial.asp

Se alguém ficar interessado em ler os dias seguintes, é só ir mudando a data no link. Lembrando que é o design do site em 2005.
Nos próximos posts, vou resgatar alguns dos personagens que conheci em um Recife que antes era invisível para mim.